A Rainha Santa, 700 anos depois da sua peregrinação a Santiago de Compostela
O que poderá uma santa do longínquo séc. XIV português dizer-nos 700 anos depois?
Na verdade, vivemos hoje num mundo bem diferente, certamente com muitas mais comodidades que então. Temos electricidade, podemos deslocar-nos facilmente, comunicamos sem dificuldade em tempo real para o outro lado do mundo. A vida na Idade Média era bastante mais difícil do que é hoje. Causa-nos sempre alguma surpresa relatarmos a vida tal como ela é rezada na “Salve Rainha”, oração atribuída ao monge Hermano Contracto, que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenau, no Sacro Império Romano-Germânico: “(…) A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei. E, depois deste desterro, nos mostrai Jesus, bendito fruto do Vosso ventre”.
Mas se pensarmos que qualquer vida era geralmente pródiga em doenças e que as pestes dizimavam sem piedade novos e velhos e que, para a maior parte da população, a pobreza era uma condição de que não havia saída, mudaríamos certamente de perspectiva. A esperança média de vida que temos hoje, com os avanços da ciência, dão-nos horizontes totalmente diferentes daqueles que tinham as pessoas que nasciam nesses tempos.
Ora, aparte todas as distâncias, podemos colher na vida da Rainha Santa Isabel, algo que aos nossos olhos conseguimos perceber como a força de convicções e uma intencionalidade que a notabilizaram. E não teria que ser forçosamente assim.
A preocupação pelos pobres, as obras assistencialistas a que se dedicou, o que fez dela uma rainha venerada pelo Povo, ainda nos nossos dias. Todos evocariam o Milagre das Rosas - “são rosas Senhor…”
O ter sido também uma campeã pela paz no reino, usando da sua proximidade ao rei de Castela e Leão (seu irmão) ou, dentro de portas, moderando as várias contendas no nosso Reino.
Não podemos certamente dissociar a sua acção da sua preparação na corte de Aragão, reino que havia ganho uma preponderância grande e que, a partir de Barcelona, estende o seu poder às Baleares e à Sicília, assumindo o cristianismo como força motriz, nomeadamente por contraste com a presença próximas dos sarracenos. No entanto, com 12 anos que é a idade em que entra em Portugal para se casar com D. Dinis, temos ainda uma Isabel em potência. A sua qualidade de Rainha, a quem são atribuídas várias terras em Portugal e a sua administração, fazia dela também alguém potencialmente com mando próprio. Quis o seu talento que soubesse valorizar a sua posição particular para fazer o bem. Não apenas àqueles como os pobres, mas também que entre os seus próximos se fizesse respeitar. Ora isso requer inteligência e força de carácter. Na verdade, trata-se de uma figura forte, longe das imagens pias que por vezes atribuímos aos santos. A Rainha D. Isabel sempre teve vontade própria e isso também o Rei D. Dinis soube expressamente reconhecer, o que faz dela uma personagem central do reinado, relevante certamente em tantas situações conflituosas que se apresentaram, onde a sua capacidade diplomática se fez notar. É por isso uma figura que enaltece a mulher na nossa História.
Não é por exemplo por acaso que, por entre tantas estátuas de reis que figuram no belíssimo jardim episcopal de Castelo Branco, apenas uma rainha surge representada… e, se hoje se fizesse um concurso tipo as “mais ilustres Portuguesas de todos os tempos”, como outrora se fez para os homens, a Rainha Santa Isabel, ficaria sem margem para dúvidas na curtíssima short-list.
Apesar de rainha, D. Isabel não teve uma vida fácil. Teve o filho contra o seu marido, o seu marido contra o seu irmão. Se não fosse uma pessoa de discernimento, teria tomado partidos e entrado no jogo da intriga. Tinha alto sentido do dever, mais até do que lhe poderia ser exigido. Tolerou as infidelidades do seu marido e em relação aos seus filhos bastardos, recebeu-os como filhos. Uma lógica diferente da dos nossos dias, em que se pensa muito mais na própria felicidade e menos do dever de cada um. Naquela altura era comum os reis serem infiéis, mas não se esperava que as suas “esposas de bênção” recebessem os filhos bastardos como ela os fez. Talvez aqui o espírito dos nossos dias veja uma forma de rendição, mas a rainha preferiu guardar o seu sofrimento e nadar uma vez mais contra a corrente.
Era rainha de Portugal, sempre o foi, mesmo depois da morte do rei, em que apesar de passar a usar o hábito de clarissa, não chegou a professar os votos. Quando vai a Santiago de Compostela, fazendo uma longuíssima viagem desde Coimbra, leva consigo um grande tesouro, que deposita aos pés do Arcebispo, Berenguel de Landoira.
O Caminho de Santiago é um local de descoberta, de entrega e confronto connosco próprios, desalojando-nos das comodidades em que vivemos. Em verdade, é prova imorredoira de que, apesar de tudo, ainda conseguimos perceber algo do espírito medieval, entregando-nos às surpresas da paisagem, da dificuldade dos montes e vales que a estrada apresenta, à mercê do calor ou do frio, da sede ou da fome e aos encontros que se proporcionam. O tempo é o tempo lento dos nossos passos e da resistência a que nos propomos. Os dias sucedem-se e vamos a caminho. Actualmente cerca de 500.000 peregrinos fazem-se à estrada, por um dos caminhos reconhecidos, sendo que cerca de ¼ deles chegam a Santiago pelos Caminhos Portugueses.
Não se sabe exactamente qual o percurso que a Rainha Santa Isabel percorreu desde Coimbra até Santiago de Compostela. Crê-se que terá ido por perto costa até Vila do Conde e que aqui terá ido para o interior usando a velha via romana que passava por S. Cristóvão do Rio Mau e S. Pedro de Rates, locais do românico em Portugal. Daí partiram até Braga em direcção ao lindíssimo Gerês, saindo do nosso país em Portela do Homem. Algumas histórias ficaram na memória popular como a da conversão dum penedo em S. Vicente de Fragoso numa fonte milagrosa, onde a rainha tinha matado a sede.
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