Mário Cordeiro "Ele sabia e sonhava...", in Jornal i, 24 de Novembro de 2015
Entrou. Entrámos. Antigo 3.o ano, actual 7.o. Aula de Físico-Química no Liceu Pedro Nunes. Num anfiteatro, lugar ainda pouco conhecido por estudantes da nossa idade, mais habituados a “salas de aula”.
Sentou-se. Sentámo-nos. Lá em baixo, com uma grande mesa, repleta de líquidos e de provetas, buretas, vasos e balões, o mestre começou a sua sessão de magia. Em silêncio, porque o silêncio é cúmplice dos grandes momentos.
O mestre agarrou num balão com um líquido transparente e juntou outro transparente, produzindo uma mistura encarnada. Perante o pasmo geral, também ele silencioso porque, creio, de boquiabertos que estávamos nem um som poderia sair, juntou mais uma substância. O líquido entrou em efervescência e ficou azulado. Vertido para a proveta, que conteria algum “pó secreto”, ficou verde.
Os “ohs!” não soaram porque o fascínio toldou qualquer reacção. O mestre continuou, fazendo truques sobre truques, misturando pós e líquidos de frascos e provetas diferentes, transformando o encarnado em azul, depois verde, a páginas tantas libertando vapores e fumos e, num último toque de alquimista, devolveu à mistura a sua transparência original. Foi nessa altura que falou para apenas dizer: “Meus senhores, isto é a química. Podem sair e até à próxima aula.” Rómulo de Carvalho, meu professor de Físico-Químicas, com quem tive uma relação muito particular. Como mestre e como poeta. Devo-lhe muito. Um dia, o António Rebelo de Sousa emprestou-me um livro de um tal António Gedeão. Estava a lê-lo no recreio (devia ter aí uns 13 anos) quando o professor Rómulo me interpelou: “Estás a ler isso? O que achas, Cordeirito (era como ele me chamava)?” “Estou a gostar muito, professor! Gostava de ter sido eu a escrever estes poemas.” “Hum”, disse ele, “experimenta que talvez um dia consigas. Não sejas mais do que simples e não tentes ser outro a não ser tu.” E nada mais disse, designadamente que era ele, Rómulo, o António Gedeão da poesia. Soube-o mais tarde, por outras vias.
Noutra ocasião, um colega resolveu copiar por mim. Eu era muito bom a Físico-Químicas, assim como era péssimo a Desenho ou a Matemática. O meu colega foi-me perguntando coisas e eu dizendo-lhas, encapotadamente. Entregámos os testes e, ao receber as notas, uns dias depois, notámos que ambos tínhamos um 13. Senti-me injustiçado. O meu teste estava impecável! Fui pedir explicações e o professor Rómulo, com um grande sorriso, apenas disse: “O teu teste está para 19. Mas como o teu colega copiou por ti esta, aquela e mais aquelas respostas e tu colaboraste, e o teste dele estava para 7, fazendo a média, já que trabalharam em conjunto e tu deixaste, ficaram os dois com um 13.” Aprendi. E agradeço-lhe essa lição que está sempre presente na minha vida.
Noutra aula, quando falava (e nós fascinados) da dinâmica do universo e da magnitude astral, apareceu um pequeno ratinho aos seus pés, vindo do jardim. O rato parou – provavelmente, também ele admiraria o mestre. Os alunos pensaram que algo de caótico se iria passar. Rómulo parou também de falar, olhou para baixo, não esboçou nenhum gesto e exclamou: “É apenas um rato.” E continuou a explicar a fusão da matéria e as unidades astronómicas, perante as quais um pequeno ratinho era apenas e tão-só um pequeno ratinho.
Também tive um conflito com ele (apenas através dos jornais, ele nunca soube) acerca do seu poema “Anti-Anne Frank”, por ter escrito que “até no sofrimento é preciso ter sorte”, comparando-a com “uma pobre criança esquálida” que morre de fome. Nunca entendi este poema, porque Anne Frank nunca tirou qualquer proveito do seu trágico destino. Já uma vez abordei o assunto com a filha, a escritora Cristina Carvalho, mas é um enigma a razão de ser destes versos. Creio que os génios também têm direito a enganar-se, para mostrarem que são humanos e não deuses, o que exalta a sua real genialidade.
“O mundo pula e avança” – e apesar de Gedeão se afirmar como céptico, descrente do homem e da humanidade, quase como um cínico, creio intimamente que não o era, muito pelo contrário. Poeta, professor, pedagogo, dramaturgo, ensaísta, publicou numerosos livros, designadamente reflexões sobre o sistema educativo, história da ciência, da educação, de Portugal. Foi maltratado pela escola depois do 25 de Abril e referia-o com mágoa.
Faria hoje 109 anos. Para escrever este texto poderia ter esperado um ano, mas não há razões para números redondos – todos os momentos são bons quando se trata de homens com a sua dimensão. Obrigado, “setor” Rómulo, por tudo o que me deu e ensinou – como alquimista da vida, fez-me estar mais próximo da pedra filosofal!
Pediatra
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