Ser advogado
Um parceiro? Um amigo?
Sempre gostei de
pensar na relação advogado/cliente como uma relação de parceria. Segundo Fried, um professor americano, o advogado será alguém que guia o cliente no sistema legal: “as instituições
sociais são tão complexas que sem a assistência de um consultor especialista,
um leigo comum não pode exercer a autonomia a que tem direito dentro do
sistema”. A função do advogado seria assim “preservar e incrementar a autonomia
do cliente dentro da lei”, sendo que etimologicamente “advocatus” derivou da
expressão latina "ad auxilium vocatus" (o chamado para auxiliar).
Hoje sistema legal
é tão complexo, difícil de enxergar e aplicar, que só alguém formado para o efeito
tem ferramentas para se orientar nesse sistema. Com a produção legislativa
abundante, o velho ideal liberal de que o cidadão deve conhecer a lei e que se
plasma na máxima de que “a ignorância da lei não aproveita a ninguém”, resulta em
algo hoje de impossível concretização. O Diário da República todos os dias
expele nova legislação e regulamentação, que é impossível acompanhar o seu
passo.
Um parceiro é
alguém que nos convém. Com quem partilhamos os nossos problemas, as nossas
dificuldades, os nossos projectos.
E que, questão
fundacional da relação na minha óptica, que está também num certo grau de
paridade connosco, contrário a situações de domínio ou de sujeição.
É aquilo que poderíamos
dizer uma “relação adulta”, em que a consciência da autonomia e da liberdade de
ambos, é um dado indelével da questão. Por excesso, do lado do cliente,
diríamos que essa autonomia e liberdade se veriam restringidas se o advogado
fosse meramente uma “pistola de aluguer” do cliente (em inglês “hired-gun”);
por defeito, se o advogado fosse uma espécie de tutor moral do cliente.
É uma relação
paritária, quando ela desaparece é mau sinal. E a relação constrói-se
normalmente num devir temporal, num processo, em que as posições estratégicas e
as tácticas vão sendo afinadas em conjunto, de acordo com o bom conselho do advogado
em diálogo como o seu cliente. E que pode até vir a tornar-se numa amizade.
A questão da
confiança, de que o sigilo profissional é uma das suas facetas, coloca-se como
premissa para essa relação: o advogado representa os interesses do seu cliente
da melhor maneira que sabe e pode; o cliente deposita no advogado a condução do
processo, contando-lhe todas as circunstâncias do caso (há um ditado popular
que diz que ao “médico, ao advogado e ao abade conta-se toda a verdade”) colocando-se
a seu lado, porque crê que o seu advogado representa-o da melhor forma possível.
A procuração conferida ao advogado é o instrumento que consubstancia esse
delegar de poderes e assenta nessa confiança que se pode ver ferida com acções
paralelas do cliente ao interferir no campo de acção do advogado.
Em certa medida, a
melhor forma de o cliente pretender que os seus interesses sejam defendidos é a
de se chegar a um equilíbrio entre diálogo com o advogado e retraimento frente
à acção concreta no terreno, isto é, passa por ajudar o advogado contribuindo
para a construção de soluções e deixar o advogado depois dirigir a forma como o
processo se desenrola.
Técnico?
Essa parceria, constrói-se
com base numa competência, em algo que os outros procuram em nós que lhes
falta: os conhecimentos jurídicos, e a forma de os aplicar num determinado campo
ou realidade. Ou seja, alicerça-se numa competência. E somos pagos por essa
competência, e por a pormos ao serviço dos nossos clientes.
Para sermos bons
técnicos, há que ter estudado e praticar a profissão.
Na faculdade
aprendemos a raciocinar juridicamente. Frente à realidade fáctica, o raciocínio
jurídico consiste em saber destrinçar o essencial do acessório e a subsumir os
factos ao sistema normativo. Por sua vez, a aplicação do sistema normativo
depende de percebermos as linhas mestras de determinado regime, compreendendo
os princípios que regulam esse regime, e a forma como as normas se aplicam. Um
não jurista tem a tendência para uma aplicação assistemática das normas, sem consideração
pela unidade e racionalidade do sistema. Daqui vêm problemas graves pois,
muitas vezes, quem aplica as leis são não juristas, que se apegam apenas à
letra da norma, sem consideração pelo todo, pelas precedências e estrutura que
enforma a lei e pelos princípios que estão na sua base.
Ser advogado é
dominar uma técnica complexa. Daí que se exija uma formação especialmente
longa, que tem por efeito criar uma forma própria de pensar, que passa por dar a
conhecer os vários ramos do direito e, sobretudo, de treinar o exercício dessa
técnica.
É uma profissão exigente,
implica estudo contínuo de soluções, para muitos profissionais também muitas
vezes abdicar de fins-de-semana, fazer algumas noitadas...
AS CARAS E POR TRÁS DOS PROCESSOS
Na minha já
relativamente expressiva actividade enquanto advogado, que se iniciou há cerca
de 15 anos, custou-me o tempo que estive encerrado sobre mim mesmo de volta do
computador, analisando lei e jurisprudência, redigindo documentos para ser
apresentados ora a um tribunal (mais raro), a uma qualquer entidade
administrativa (mais frequente), ou a qualquer agente das minhas relações
profissionais.
O que me impele
para o fazer são por vezes angústias de clientes, que dependem disso para verem
avançar qualquer assunto da sua vida. A profissão de advogado depende muito
disso.
Gosto de estudar,
mas por vezes as exigências de um sistema que assenta muito em papel acaba por
criar uma processualização exagerada e que nos parece desajustada, sobretudo
quando assentam em conflitos. E há quem pretenda através dessa processualização
ganhar tempo, tornar mais complexa a análise dos casos e dificultar que cheguem
ao fim. Não deixa de criar alguma frustração.
A Administração
Pública também não ajuda em muitíssimas vezes, exigindo procedimentos e cumprimento
de formalidades exageradas.
Tudo isto faz com
que por vezes a profissão de advogado possa significar um desequilíbrio que
tende menos para a defesa activa de problemas de forma enérgica, e mais para se
tornar um burocrata. Neste sentido, julgo que ajuda ao advogado aceitar que há
de facto uma carga de burocracia a aceitar e que quanto mais organizado for,
mais facilmente suportará essa faceta menos agradável da profissão, que na
realidade é um meio importante para a boa defesa dos interesses dos seus
clientes. Criar hábitos de organização e método faz poupar muito tempo e
energia.
Na verdade, nunca
se deve perder de vista que o advogado representa pessoas e que a profissão tem
uma utilidade social indubitável. Já o senti inúmeras vezes. Uma vitória num
processo é uma pessoa que fazemos feliz.
É uma forma
honesta de ganhar dinheiro.
COMO É QUE ALGUÉM SE TORNA ADVOGADO? E OS DIFERENTES ESTILOS DUM
ADVOGADO
Embora na
faculdade se desvaneçam muitos sonhos de que o direito é uma profissão
verdadeiramente ligada a valores como a justiça e pareça apenas a aplicação dum
sistema normativo e a aprendizagem da técnica, as profissões forenses são
profissões ligadas à vida comunitária, ou à vida societária, como se queira.
Elas têm por fim sempre, a defesa de posições e de interesses de alguém. São
pois profissões de natureza relacional e argumentativa. Elas manifestam a
natureza humana na sua heterogeneidade, na sua multiplicidade de interesses -
por vezes convergentes; por vezes divergentes -, precisando de ser expostos,
apresentados e discutidos. Neste sentido, revelam a subjectividade de que somos
feitos, sendo as ciências jurídicas naturalmente ciências humanas.
Ninguém nasce
advogado como ninguém nasce arquitecto ou engenheiro. Uma pessoa “faz-se”
advogado, como “se faz” arquitecto ou engenheiro.
No meu caso pessoal,
sempre tive uma inclinação para as Humanidades. E até para as Humanidades mais
especulativas como a filosofia. O direito é uma ciência humana de índole
prática, muito diferente da filosofia. O que me atrai no direito é que, à
semelhança da filosofia, o direito é prático mas também argumentativo. Assim
como a política. Os problemas do direito não são normalmente especulativos. Têm
a ver com a vida concreta de pessoas e com os assuntos que têm em mãos.
Quando estava na
faculdade gostei muito de Direito Constitucional que apelava a questões que se
prendiam com um sistema claro de distribuição de poderes e a uma análise jurídica
feita num esquema claro. Fui proficiente em outras matérias jurídicas, como em
Direito das Obrigações em que conceptualmente as matérias estavam fixadas com
alguma nitidez, mas já não muito em Direitos Reais, que me pareceu um ramo em
que os conceitos pareciam muito “escorregadios”, o que admito em parte advir
dos manuais porque estudávamos.
Interessava-me por
assuntos como Economia Política, assim como tudo o que se prendia com os princípios
axiológicos que regem matérias mais económicas (o Direito Fiscal, por exemplo) e
que plasmavam princípios constitucionais como o princípio da legalidade, da
tutela da confiança, entre outros.
O direito
divide-se em muitos ramos distintos, sendo que em todos eles há uma parte
processual. Ora sucede que esta parte processual é altamente complexa e não
sempre fácil de se entender, porque dada na faculdade de forma não concreta com
situações da vida mas sob forma de exercícios académicos (como não podia aliás
deixar de ser). Parece-me que também a pedagogia e a capacidade explicativa dos
professores nem sempre é a melhor e que o critério de escolha dos professores
pouco assenta nas suas capacidades de ensino.
A minha
experiência na faculdade revelou-se como um período bastante árido e difícil. O
ambiente era muito competitivo e não tive muitos amigos com quem estudar e
partilhar as minhas angústias e dificuldades; os professores pouca ou nenhuma
relação tinham com os seus alunos.
Passados que estão
quase 20 anos desde que terminei a universidade, penso que o Direito ensinou-me
bastantes coisas e sinto a evolução que fiz. Quando olho para trabalhos que fiz
há 5 anos noto que evolui. Mais ainda se analiso um documento feito há 10, 15
ou 20 anos. O meu raciocínio apurou-se, um texto feito por mim há 20 anos é
muito menos claro do que feito agora. O Direito em certa forma tornou-me uma
pessoa mais prática, com os pés mais assentes na terra, com menos ilusões. Temos
que desconstruir muitos dos castelos que construímos no ar, estar mais atentos
à realidade.
O Direito é um
constante e permanente exercício de resolução de problemas mais ou menos
difíceis. Pede-nos capacidades de análise, de reflexão, de síntese e de rigor.
Pede-nos capacidades de explicação, de argumentação, de persuasão, se não mesmo
de sedução (no outro dia alguém me dizia que um advogado é um sedutor). Em
certa medida é uma profissão que requer capacidades muito diversificadas.
Cada um pode orientar-se para um estilo de advocacia que melhor lhe assenta. Há muitos estilos de advocacia. Há advocacia mais de escritório e advocacia mais de barra.
No entanto, se há algo que penso transversal ao direito é o seu carácter argumentativo e, numa imagem certamente não "trompeuse", o de pessoas livres - manifestado anedoticamente na imagem de seres que estão sempre a discutir, que procuram a discussão por feitio (será por isso que é uma prática comum que os sócios das sociedades de advogados estejam sempre a zangar-se e a montar novas sociedades de advogados?!). Na minha família de arquitectos, nem sempre foi bem aceite esse meu feitio "reverbativo"... em bom rigor, penso que a dialéctica é muito importante e assumo-a como uma virtude e não um defeito, mais como método de construção do que como forma de destruição (em francês "discuter" é conversar)
Na universidade
treinamos sobretudo a parte técnica da coisa, a gramática da profissão e é pena
que muitas vezes essa aprendizagem não seja feita de uma forma mais motivante. Na
profissão, aprendemos a desenvolver todas as soft
skills e a dar um sentido ético à nossa actividade. Assim, com os
rudimentos da gramática podemos começar a prosa da profissão e a escrever de
acordo com o nosso estilo próprio. O ideal seria que pudéssemos conseguir
escrever poesia também; essa poesia é talvez o produto destilado de muitos anos
de profissão.
E em que é que ela
se manifesta, essa poesia?! Em histórias como aquela dum mecânico a quem um
determinado agricultor levou o seu trator e que estava com uma avaria. O
mecânico abriu o motor, deu uma volta ao trator e pegou numa chave inglesa e
deu um golpe seco numa certa peça. O motor ficou logo a funcionar. “Quanto é”,
perguntou o agricultor?”; “São 105 euros”, respondeu o mecânico. “105 euros?!
Tanto!”, reagiu o agricultor, “O senhor só deu um golpe seco numa peça. “Sim,
são 5 euros por esse golpe e 100 euros por saber onde o dar!”, respondeu o
mecânico.
Aprendi a dar
muito mais importância ao lado relacional do direito, afinal o direito assenta
numa condição do humano enquanto “animal social”.
A parte técnica é
algo que estamos sempre a aprender, por prática do ofício, mas se não
fomentamos também a parte do convívio, podemos tornar a nossa vida um tanto ou
quanto aborrecida. O relacionamento com os clientes, a construção de relações
de confiança com eles, assenta muito nas capacidades relacionais que temos. O
bom senso, ou aquilo a que se chama a inteligência emocional, são competências
que não se aprendem nos livros, mas dependem de uma gestão da nossa vida no “comércio”
com os outros, na interacção com os outros. Diz-se que o sucesso profissional
duma pessoa a logo prazo, por contraste com alguém que apenas é um bom técnico,
depende muito disto.
Em estudos de
pós-graduação que fiz, assentei muito mais a minha atenção nos vínculos e
amizades que poderia fazer. Sabia que muito do que iria aprender não teria
qualquer utilidade futura para mim. As notas também não seriam relevantes, mas
muito mais importante seria conhecer outras pessoas, trabalhar com elas,
partilhar o tempo e os momentos fora das aulas, tornando também muito mais
agradável todo o contexto de estudos, que por si eram exigentes e trabalhosos.
Cada vez mais
estou convicto que a capacidade relacional é um factor diferenciador e, por
exemplo, ter uma rede de amigos profissionais com quem se possa conversar e
falar dos seus casos e dificuldades é um importante activo, a alimentar. Além
de nos fazer bem enquanto pessoas, faz-nos bem profissionalmente. Uma tertúlia entre advogados parece-me neste sentido uma boa ideia, sobretudo se partilharem formas de estar e de amizade.
COMO SE PRATICA HOJE EM DIA A PROFISSÃO?
Os profissionais
liberais têm tendência para se juntar em sociedade pois assim conseguem
encontrar economias de escala e partilha de clientes e casos onde cada um se
sente mais preparado. É uma forma de entreajuda e de partilha que quando as
pessoas se relacionam bem (há quem diga que é mais difícil ter bons sócios que
um bom casamento…) tem evidentes ganhos.
Há também
naturalmente quem exerça a profissão em prática isolada, porventura cada vez
mais raro, o que exige mais de cada um e que tem maiores riscos, mas que também
por vezes confere uma grande liberdade pessoal. Tem sido o meu caso, numa
prática essencialmente virada para o Direito do Imobiliário e do Urbanismo.
Crescentemente,
sobretudo em cidades maiores criaram-se grandes escritórios de advogados, que
são na realidade grandes empresas que conseguem representar clientes
institucionais que requerem também eles estruturas maiores.
Há um facto
bastante notório de que a profissão, sobretudo em determinadas estruturas
organizativas mais empresariais, tem-se tornado por vezes demasiado consciente
da eficácia e da produtividade dos seus advogados. Um facto que por si é positivo
de avaliação de desempenho, mas se feito de uma forma desequilibrada e em vista
sobretudo do retorno financeiro pode no entanto ter por efeito tornar os
advogados demasiado enclausurados em gabinetes e afastados da realidade social,
qual guetos, com custos para o seu próprio bem-estar pessoal. Por outro lado, a
eficiência financeira, se erigida em principal critério, não deixará de se
manifestar em certos casos num condicionamento da liberdade do advogado, para
conduzir os casos da maneira que lhe parece ser mais correcta do ponto de vista
ético, atendendo à justiça concreta de cada caso (e acaba por criar uma relação
perversa com os clientes). Por vezes, as lógicas internas dessas estruturas,
como aliás de qualquer estrutura organizativa de maior dimensão (como por
exemplo um partido), não permitem o exercício da plena liberdade de consciência
dos seus profissionais, actuando os seus membros muitas vezes sob uma certa “reserva
mental”.
O EQUILÍBRIO NA NOSSA VIDA
Entre autómatos e mestres de nós próprios
A aceleração
temporal faz com que vivamos ao ritmo da comunicação e como esta cresceu
muitíssimo, temos acesso a muita informação. Informação que temos dificuldade
em digerir. Como diz Charles Landry “cada vez mais, a nossa primeira sensação (…)
é a de excesso de informação, o que nos faz sentir que as coisas estão fora de
controlo”. Diz-nos ele que “quer a publicidade quer os meios de comunicação
procuram preencher com os mais estridentes tons e sons, os desejos de cada um.
Há toda uma distração, perca de atenção, de concentração e de foco”.
A dispersão
crónica em que muitas vezes vivemos tem consequências gravíssimas em termos de
saúde mental. O mundo exterior envia-nos tantos dados contraditórios e todos
lutam por ganharem na guerra da nossa atenção.
Se não sabemos
proteger-nos da agressão exterior, ficaremos contaminados por tanta poluição e
andaremos para onde sopra o vento, tal qual catavento. Isto gera inseguranças e
ansiedade, porque soçobrando frente à força dos factos exteriores perdemos a
nossa ligação ao nosso eu profundo, anulando-o. Mas ele continua a existir,
mesmo que na obscuridade, desalinhado com aquilo que escolhemos, em decisões
tão pouco reflectidas.
O mundo exterior
obriga-nos a respostas rápidas. Por aí se vê que tantas decisões no campo
político sejam tão pouco preparadas, o que resulta num descrédito nos nossos
representantes e, mais grave, num enfraquecimento das instituições. Parece que
vivemos à semelhança do jogo das cadeiras em que se não escolhemos rapidamente
a nossa cadeira ficaremos de pé, sem cadeira, e que as interrupções da música
sãos cada vez mais frequentes.
De acordo com
Byung-Chul Han, uma das mais inovadoras vozes filosóficas surgidas na Alemanha,
o Ocidente está a tornar-se uma sociedade do cansaço. Segundo este autor
germano-coreano, qualquer época tem as suas doenças características. Houve uma
época bacteriana, que terminou com a descoberta dos antibióticos. A época viral
foi ultrapassada através das técnicas imunológicas, apesar dos periódicos
receios de uma pandemia gripal. O início do século XXI, do ponto de vista
patológico, seria sobretudo neuronal. A depressão, as perturbações de atenção
devidas à hiperactividade e a síndroma do desgaste profissional definem o
panorama atual.
Há estudos que
demonstram que a profissão de advogado, ao tornar-se demasiado preocupada com a
eficácia e com ganhos financeiros, perdeu muito do seu encanto. É essencial que
nos preocupemos com a qualidade do nosso tempo, muito mais do que com a
quantidade de coisas que conseguimos encaixar na nossa agenda. Daí que tenhamos
que ser selectivos e que nos tenhamos que auto-regular, tendo a coragem de por
vezes dizer “não”.
Diz-nos Vasco
Pinto de Magalhães que só “avança quem descansa”.
É muito importante
criarmos um equilíbrio na nossa vida entre acção e contemplação. A sabedoria de
velhas práticas agrícolas em que os campos depois de cultivados ficam em pousio
pode-nos ensinar muito sobre o que é a regeneração. O tempo de descanso é um
tempo para deixarmos aflorar em nós o nosso eu profundo. Para deixar respirar o
nosso corpo, as nossas fibras. Para nos deixarmos ser e estar simplesmente. As
férias devem ser tempo de paragem.
Encontro muita paz
na natureza e aprecio caminhar. Gosto também de dar bons mergulhos no mar.
Discernir tem que
ver com a capacidade de ver a realidade, de pesar as coisas e as opções, vendo
o fundo das questões à luz de valores, traçando uma direcção. Não devemos ser
autómatos a disparar para todos os lados, respondendo a todos os estímulos
exteriores mal eles se nos apresentam. Isto não quer dizer que devamos ser
rígidos, com um plano muito bem traçado. Não, a realidade pede-nos que sejamos
tacticamente flexíveis, mas devemos pensar primeiro no que pretendemos que seja
o fio condutor da nossa acção. Há aqui naturalmente o emprego da disciplina, um
exercício de reflexão e de avaliação regular para que, quando nos colocamos em
acção, ela seja motivada por um trabalho prévio interior.
Para que possamos
empregar estas nossas capacidades, temos porém que estar em condições para o
fazer, precisamos de encontrar paz na nossa vida. Temos que estar com saúde,
bem dormidos, com tranquilidade.
A importância do contacto com os outros
A relação com os
outros é um factor determinante para o nosso bem-estar. Se estamos sempre a
correr dum lado para o outro, não conseguiremos estar verdadeiramente com
ninguém.
A profissão de
advogado mudou muito neste aspecto.
Nas pequenas
comarcas ainda se vive em contacto com as outras profissões do foro, a
profissão radica muito mais na comunidade.
Mas se estamos
preocupados apenas em produzir, o advogado acaba por viver isoladamente,
fechado no seu gabinete, sem as relações pessoais que tornam a profissão uma
profissão que sempre esteve intimamente associada com o pulsar das comunidades
e a interecção. Além de afastar a prática profissional da realidade, isto tem
por efeito claramente um risco para a saúde mental dos advogados, diagnosticado
também como um factor de mal-estar profissional.
Qualquer pessoa
precisa de se sentir parte de algo, precisa vitalmente do encontro com os
outros para se sentir bem.
Uma profissão
exigente e complexa como as profissões forenses precisa ademais que se criem
vínculos de partilha e de intercâmbio pois é também fundamental para o
crescimento profissional dos seus membros. Através desse “comércio” de ideias,
os problemas são mais facilmente abordados porque partilhados com quem tem
também sensibilidade jurídica, pensa-se em voz alta, arruma-se a cabeça.
Por outro lado, a
ansiedade recebe a atenção de quem percebe que os assuntos muitas vezes não têm
respostas imediatas, numa solidariedade que se faz por pôr-nos a reflectir em
conjunto. Ter uma rede de apoio entre profissionais do mesmo foro é um seguro
de qualidade profissional.
Sermos organizados
Muitas vezes vemos os advogados queixarem-se que trabalham muito, que
têm grandes jornadas de trabalho, sem tempo para nada. Isto tem uma parte de
verdade e uma parte de exagero.Há quem por inércia e arrasto se torna escravo
dessa prisão que pode ser uma secretária, o computador e os papéis. Uma pessoa
organizada encontra tempo para tudo, se souber gerir bem o seu tempo.
Gerir o tempo é prever. É visualizar o futuro, encorporar-nos nele por
imaginação. É uma antecipação que melhor nos permitirá viver o que ainda não é
presente, mas que trazemos presente a nós para o viver o melhor possível quando
esse tempo chegar a nós. É tentar esgotar o que ele nos tem a oferecer,
explorar ao máximo o seu potencial. Cruzamento de informação, espírito
inquisitivo, capacidade imagética.
Quem é organizado, pode também usar a sua criatividade de uma maneira
mais inteligente. Eu creio que um advogado precisa de ser criativo também. Mas
a criatividade tem que ter condições se realizar. Só quando temos tempo de
qualidade é que podemos dar o melhor de nós. Quem é atabalhoado, trapalhão,
desorganizado desperdiça também a sua criatividade. Se temos a nossa vida
organizada, podemos também pensar com mais calma nos processos que temos. Nas
soluções para os mesmos processos.
Criar hábitos de organização é fazer coisas simples como preparar a
semana. Fazê-lo à segunda-feira, por exemplo. Espalhar as coisas a fazer pela
semana. Nela distribuir conforme locais a estar, disposições e motivações,
necessidades e vontades. Destinar tempo para o trabalho, organizar o trabalho,
deixar tempo livre de qualidade. Isso é o “preparar a plasticina”. E organizar a nossa vida é também ir riscando, ao longo do caminho,
tarefas já feitas, reorganizar, escolher prioridades.
Enfim, uma pessoa organizada goza o tempo doutra maneira e tem tempo
para tudo: acredito verdadeiramente nisso. Uma pessoa organizada terá tempo
para viver no presente, para se poder esquecer no presente e viver todo
empenhado no presente.
Ser organizado não é ser chato e levar o planeado como o peso duma
obrigação. Por isso, normalmente, organizo a semana à segunda-feira e o que
fica por fazer - há coisas mesmo que adio e deixo para "amanhã", e só
mesmo à sexta-feira as volto a pegar (“dia de restos e revisões”, como lhe
chamo).
EM GUISA DE CONCLUSÃO
Na minha infância subi árvores,
fiz corridas de bicicleta, descobri esconderijos e passagens secretas. Saltei
cercas e fiz provas de coragem. No Verão acampávamos e fazíamos fogueiras,
edificávamos casas com fardos de palha. Demos saltos na piscina, tentávamos
furar a arrebentação das grande ondas e nadar bem para longe. O maior sonho de
todos era ter um rio. Havia uma ribeira perto da Quinta e fomos lá várias vezes, em grupo, tentar
apanhar peixes.
Depois cresci e tornei-me advogado.
Mas ser advogado pode ser permitir que outros subam a árvores, façam corridas de bicicleta e descubram esconderijos e passagens secretas... e muito mais. Que outros sejam livres e felizes. O preço a pagar é o meu tempo e a minha energia. E pode ser que nos intervalos, se for fazendo bem os tpc, ainda encontre tempo para continuar a subir a árvores.
Ser advogado é mais um estilo de vida que uma profissão, é sobretudo ser-se livre e dar vida. Alguém uma vez disse que um poeta não se reforma; acrescentarei porque tem sede de Paraíso. O advogado tem a mesma agitação interior do poeta e pode ir ao Inferno para resgatar o Paraíso.
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