Fazer-se advogado


Não nascemos advogados. Tornamo-nos já depois de uma já relevante caminhada. 
A nossa vida faz-se de muitos fios que vamos entrelaçando uns nos outros ao longo do tempo.
Embora possamos dizer que o que fazemos como profissão seja um elemento essencial da nossa identidade, é bom que não nos prendamos a uma imagem fixa, imóvel da mesma e que a mesma não seja um paliativo para uma personalidade fraca, incompleta. Diz-nos Anselm Grun (o Desafio Espiritual da Meia-Idade: "a reacção frequente, como defesa em relação à insegurança, consiste em apegar-se com força e sem humor à sua própria pessoa e identidade, à profissão, às ocupações ou a um determinado "título". Jung crê que essa identificação com a profissão ou com o título tem «algo de sedutor e, por isso, tantos homens se resumem apenas e só à dignidade que a sociedade lhes concedeu. Seria inútil procurar neles uma personalidade por trás da casca.  Atrás das grandes aparências representativas, não são mais que um insignificante homenzinho digno de compaixão. Por isso, a profissão é tão sedutora: porque representa uma compensação barata para uma personalidade deficiente»".
Nascemos e crescemos numa determinada família, num determinado lugar. Estudamos num determinada escola. Vamos tendo estes e aqueles amigos. Estas e aquelas experiências. Temos todo um contexto que nos vai moldando. Vamos tecendo a nossa manta. 
O gosto pelas Humanidades sempre foi um dado certo. 
Sempre fui uma pessoa com necessidade por uma busca de sentido. Que nem foi encontrada com evidente clareza. Quando o sentido não existia, muitas vezes fui desalinhado. As Humanidades mas também a arte tem-me ajudado a encontrar esse sentido. 
Não raras vezes me senti na corda bamba e vizinho do perigo. Se calhar desenvolvi um sentido do perigo que me levou a desenvolver até um certo gosto por arriscar. Lembro-me que no colégio onde andava por vezes me pus em situações de transgressão para ver como delas me sairia. Certamente que muitas vezes terá sido de uma forma gratuita, até estúpida, mas provavelmente esconderia uma falta de sentido que sentiria.
Por outro lado sou uma pessoa com imaginação. Lembro-me que quando estava a aprender a ler era mais levado pela imagem do que pelas letras. Inventava histórias a partir do que via nas imagens! 
Na Faculdade houve muitas matérias de que não gostei. Odiei estudar processo civil - achei uma coisa completamente inacessível. Ou mesmo Teoria Geral do Direito Civil, ou Direitos Reais.
Hoje estou em crer que tudo se tratou dum problema claro de motivação: a curva de aprendizagem era demasiado grande e comprida (seria interessante fazer mesmo um esquema com essa curva de aprendizem). O direito é uma linguagem, uma técnica complexa. Quem está a aprender por exemplo chinês tem que passar por um longo processo de aprendizagem, que é desmotivante em muitos casos. No meu caso particular, não tive pai nem tio advogado, não tive na infância ou na juventude ninguém que cultivasse o direito e que me fizesse habituar a habitá-lo.
No outro dia alguém me dizia que sofreu de depressão na universidade. Eu acho que também provavelmente sofri do mesmo fenómeno. Eu fui muito bom aluno no secundário, a frustração na faculdade foi uma constante. 
Só ao fim de muitos anos de prática é possível começar a conversar em chinês. Isso é que dá satisfação: pôr a técnica ao serviço. Utilizar a técnica sem pensar nela. Esquecê-la. É aquilo que Miyaly Csikszentmihalyi desenvolve de forma brilhante no seu livro "Flow": quando o esforço é demasiado deparamo-nos com a frustração. Por isso, nessas fases de aprendizagem é importante ter estratégias para não absolutizar a dificuldade e para ir gozando a caminhada. O caminho faz-se caminhando. Mas isto não se aprende a fazer rapidamente porque é também no mesmo contexto do ensino que se absolutiza as notas e parece que a pessoa vale na medida da sua média. 
Que língua é essa o direito? Alguém me perguntava no outro dia e qual é a sua língua Duarte?
Eu respondi, "a minha língua é fazer pontes". E reli uma frase: "quem tem habilidade para lidar com pessoas, resolvendo ou procurando resolver problemas difíceis". Dadas as minhas características pessoais, penso que por um lado procuro sentido naquilo que faço  e tenho empenho em ajudar os meus clientes nos seus problemas (os meus clientes sozinhos não se conseguiriam desenrascar) e emprego imaginação nisso.  
Ultimamente, tenho muito pensado que gostamos quanto mais nos damos às coisas. Ou seja, quanto mais investimos numa determinada coisa, mais gostamos dela. Quando damos apenas 10%, apenas recebemos 10%. Mas se damos 60 ou 70% retiramos o equivalente. O direito tem a ver com o empenho. E se pudesse empregar a imagem, diria que para um bom resultado em direito temos que tentar pintar um pouco como Canaletto nas suas pinturas de Veneza. É um trabalho paciente, de artesão. E aquilo que um professor de ténis me disse uma vez que diferenciava os bons dos maus tenistas: "o trabalho invisível".

Conhecemos pessoas interessantes no mundo do direito. Talvez mais do que estivéssemos confinados a estudar filosofia, num qualquer escondido departamento de uma faculdade. Sobretudo clientes interessantes. "O mero filósofo é um personagem que em geral não tem muito boa aceitação no mundo, pois supõe-se que ele em nada contribui para o proveito ou prazer da sociedade, na medida em que vive longe da comunicação com os seres humanos e se encontra enredado em princípio e noções igualmente distintas da sua compreensão.


Supõe-se que o carácter mais perfeito está situado algures entre esses dois extremos, mostrando a mesma habilidade e gosto pelos livros, pela convivência e pelos negócios, revelando, na conversação, aquele discernimento e delicadeza que brotam da familiaridade com as belas letras e, nos negócios, a probidade e o rigor que são o resultado de uma sâ filosofia.

Parece, então, que a natureza indicou um tipo de vida mista como o mais adequado para a raça humana, secretamente advertindo-a de que não deve permitir que qualquer dessas inclinações se imponha excessivamente a ponto de nos incapacitarmos para outras ocupações e entretenimentos. Sê um filósofo; mas, em meio a toda a tua filosofia, não deixes de ser um homem." David Hume, in "Investigação sobre o Entendimento Humano"


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