De regresso a casa

1. 

Depois de desembarcado na Gare do Nord e despachadas as minhas malas por um serviço de grumetes, resolvi calcorrear a cidade ao longo do Sena, na demanda da minha morada. Naquela tarde, uma luz agradável dava brilho ao edificado regular e de singela beleza, nos seus tons ocres. Fui então invadido por uma paz interior e um contentamento transbordante, espelho desta cidade de Paris, que tem a virtude de arrumar a alma e nos fazer acreditar num futuro radioso. Saltava de alegria e, na verdade, mal pude contê-la se não no final do dia, quando me sentei na escrivaninha da minha água-furtada, para escrever a meu querido pai: chegara bem, sentia-me nas nuvens! 
Aqui, uma nova etapa da minha vida se abria, e não esperava nada menos do que me tornar no pintor que sempre em mim falou mais alto e que todos os meus gestos desde os meus 7 anos apontaram que me tornaria.
Iria estar então entre os melhores. Mas isso não me assustava porque eu não escolhera uma ocupação. A pintura, o desenho são o meu respirar, o meu andar. E, por isso, é tão bom poder aprender com os grandes mestres e com co-discípulos que estão no mesmo trilho da descoberta. 
Sempre precisei de desenhar e pintar. Senti-me feliz sempre que o fiz.
Se a expressão do meu gesto se se pudesse afinar, pela prática, pela dialética e pelas indicações dos mestres e dos colegas, seria eu também que conseguiria falar do mundo e torná-lo mais próximo. Far-se-ia como que a fusão entre o artista e a sua obra, para que ela depois ganhasse asas e voasse e tocasse então os corações dos homens e mulheres. 
Paris é essa Meca onde os artistas experimentam e criam, no afã de, na angústia das dificuldades da composição e da realização, ultrapassarem as limitações da técnica e tocarem o sublime.
A minha aprendizagem tomou porém o rumo do imprevisto. 
Um jovem tido por talentoso - e mais não digo porque fica deselegante louvar seus próprios méritos -, poderia esperar, neste contexto, aspirar à glória, ao reconhecimento da academia e das exposições.
Fui um jovem, a ingenuidade e a falta de experiência criam ilusões que a vida vai ensinando a deixar para trás, tal pele de cobra que fica pelo caminho. Na realidade, nunca acumulei muitas ilusões, sobretudo quando cheguei a Paris. Aí, ao visitar o Louvre e a iniciar a minha aprendizagem no atelier de Cabanel, percebi onde estava. A humildade e o trabalho é que fariam a diferença. Trabalhei arduamente, sem descanso. Sempre na tentativa de melhorar, de me aperfeiçoar. 

2. 

Ao regressar a casa depois dum dia chovoso e frio, roupas molhadas, enquanto pintara todo o dia numa rua o Inverno de Paris, comecei uma tosse que não parou mais. Diagnosticaram-me uma bronquite. Lutei contra ela, oscilei entre estados de espírito, entre sinais de esperança e de desencorajamento. Fui para Bourboule, no sul de França, para fazer tratamentos de águas e melhorei. Ao regressar a Paris, consultado um médico disse-me ele que durante o Inverno seguinte que se aproximava deveria partir para Itália.

3.

Parti para Roma. Não me sentia melhor. A Academia em Roma não me satisfez e tomei então a decisão de me juntar a outros artistas, sem mestre. A riqueza da vida das ruas, o encontro com os populares, as cores e a vivacidade dos olhares, a crueza da vida e da pobreza e a companhia de alguns artistas que encontrei mostraram-se mais fortes que a disciplina dos mestres. E, assim, comecei a retratar aqueles rostos, as gentes andrajosas e as personalidades fortes das mulheres do povo. Nessa Itália cálida, desprendi-me das convenções através do olhar penetrante dos meus modelos, apanhados ao acaso entre as ruelas dos bairros mais pobres da Cidade Eterna. Foi sobretudo esse embrenhar-me na vida dessas pessoas, fora do espaço do atelier, embora esse contacto tenha justamente começado dentro de portas, com um jovem humilde que retratei num quadro a que  chamei "Esperando o Sucesso". Foi ele que me levou a espreitar melhor para o espaço da cidade, a encontrar nos becos e vielas os retratados dos meus quadros posteriores.

4.

As minhas pernas frágeis, impulsionadas mais pela vontade do que pelos pulmões vigorosos (essa tosse não me largava), levaram-me ainda mais para Sul. Cheguei a Nápoles. O fulgor da experiência, a imersão dos 5 sentidos na agitação duma cidade intensa em que a paixão acaba muitas vezes no puxar do punhal, chamavam-me a viver a pintura mais ainda e a conviver com outros artistas. Resolvemos então partir para Anacapri. Aí aprendi que a luz só pode ser compreendida pintando no exterior e o confronto entre o azul do mar, o verde da vegetação e aquela luz batendo nas casas exige que estejamos inebriados pelo cheiro da esteva e que nos esqueçamos que o tempo existe.

5.

Iniciei o regresso a casa. Fiz todo o caminho desde o sul da Itália, cheguei a Génova e daí parti de barco para Barcelona, Sevilha e todo o caminho até Vila Viçosa, local do meu nascimento. Seria uma despedida? Penso que sim. Em casa pintei ainda um ramo de flores e expirei. Tinha 25 anos. Os anos que vivi foram cheios. Tornei-me o pintor que queria?! A vida ensinou-me que os caminhos não são rectilíneos, mas fiz sempre o que mais amei. Amei a vida, amei a arte e a ela me entreguei. Por amor dela vivi, por amor dela morri. Respirei dela e expirei por ela.

Chamo-me Henrique Pousão e vivo agora entre as nuvens, o que sempre foi mais difícil de pintar, mas ainda não desisti de o tentar. 






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