Não se perturbe o vosso coração
“Não se perturbe o vosso coração.
Credes em Deus; crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se
assim não fosse, como teria dito Eu que vos vou preparar um lugar? E quando Eu
tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei novamente e hei-de levar-vos para
junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também. E, para onde Eu
vou, vós sabeis o caminho.» Jo 14, 1- 4
A frase tem ressoado em mim: "não se perturbe o vosso coração".
A sabedoria do coração, o órgão
que pulsa e que grava tudo, mas que nos exige um trabalho de ourives que nos
pede que o deixemos respirar, massajando cada nódulo com infinita paciência.
O coração palpita, vive,
agita-se, sofre e alegra-se. É uma criança nas nossas mãos que pede cuidados.
Uma criança que, quando agitada pelas emoções, requer que a embalemos,
sussurando palavras que a sosseguem e que talvez só uma noite bem dormida faz
com que acerte o passo. Tudo regista, tudo sente. E que precisa de respirar.
Precisa de tempo para viver as emoções, para as percorrer.
É pelo coração que somos felizes.
É das profundezas do coração que pode surgir um sorriso aberto, que rasga o
nosso olhar e nos torna assim cândidos de espanto e de inocência. Um sorriso é
o coração feliz da criança a abrir-se e até ao dia da nossa morte, esse sorriso
é o despertar da criança que seremos sempre - mesmo que as rugas carreguem a
nossa face e que nela estejam inscritos anos e anos de tristeza.
A sabedoria do coração. É ele que
é o nosso guia. O nosso guia é a nossa criança escondida no fundo do nosso
coração, o nosso palpitar que anseia pela tranquilidade e pelo sorriso sereno.
Essa luz interior é o nosso
tesouro. Por ele somos e, sem ele, não somos senão maquinalmente tristes e
desalmados.
Por ele somos, no nosso íntimo
sem precisarmos de nada mais senão do alimento do amor e da graça.
Com ele
rezamos, a verdadeira escola de filigrana. Amar é também uma oração, mas não
sabemos onde nos leva porque para amar precisamos dos outros. E os outros, tal
como nós, são e somos sempre surpresa. E, por isso, o nosso tesouro é mantermos
sempre essa conversa com a nossa criança interior, o nosso coração, cuidando
muito bem dela, com afecto e sem permitirmos que ela se assuste, se atemorize,
se entristeça, se escandalize. Ele não se deve agitar. Não se deve perturbar.
Precisamos de trabalhar como ourives. O coração é muito sensível. Sente coisas que o adulto racional não entende. O adulto racional tem que ser paciente, aturar as birras, sentir a agitação dum dia demasiado intenso de emoções - boas ou más - e depositar a criança, com todo o cuidado, na sua cama, tapando-a muito bem para ela dormir uma noite muito descansada.
Acredito muito no coração, pois
nunca se desiste duma criança.
Em cada bandido, em cada crápula,
pulsa também um coração e nele há uma criança. Há corações muito amordaçados.
Que só vêem trevas. Onde um raio de luz não chega. Rosebud, Citizen Cane.
Tornar o coração de pedra, sem
sumo, é triste. É muito triste. Foi preciso muito sofrimento, muito desespero.
Mas ainda há uma criança que pode falar.
Estes tempos esquisitos têm sido
únicos para sentir. Para sintonizar-nos de volta.
O coração precisa de tempo. Há
sempre muitas feridas a curar. O tempo faz o seu trabalho. O adulto em nós deve
fazer a sua parte. Estes tempos esquisitos têm ajudado.
Volto atrás, repito: o coração
tem que respirar. Ele tem que ser deixado existir, ter o seu espaço, o seu
lugar. Quer queiramos quer não, enquanto existirmos ele vai batendo,
repetidamente. Não sentimos as suas batidas, mas se o abafarmos, se o
amordaçarmos o coração torna-se uma criança que há-de se revoltar perante tanta
negligência. E permitir-nos que essa criança ande depois à solta é algo
terrível, perigoso mesmo.
O coração tem que aprender. O
coração tem que aprender a ouvir a sua voz. O adulto racional de nós tem que
ensinar a criança a ouvir a sua voz. Tem que ensinar o coração a sentir a sua
pulsação. E a aprender o que é importante. A canalizar os seus gritos de dor
para que aprenda a conversar consigo. Há sempre porquês difíceis, mas vale a
pena colocá-los e vivê-los. Porque a graça providencia sempre novos horizontes,
novos nasceres-do-sol. E entretanto fomos aprendendo a viver.
Diz-se que Maria não compreendia.
Mas que guardava tudo no seu coração. Essa é a escola. Isso é a oração. A
oração é a verdadeira escola da sabedoria do coração.
Comentários
Que órgão é este que marca “o pulsar” da nossa vida ao mesmo tempo que comporta tudo … a pessoa que somos está no coração que temos. No amor, no cuidar, no que fomos guardando e no que arrancámos pela raiz. Na forma apaixonada como vivemos ou nos medrosos “tristes e desalmados”, que fomos cultivando em nós. Somos fiéis e leais?
Não acho que “o adulto racional” tenha que ensinar nada ao coração… nem o tenha que proteger… não subestimes o coração… é ele que molda “este adulto”, lhe vai dando consistência, significado, força, resiliência para seguir caminho. A razão terá sempre que existir na nossa vida, mas quem prevalece neste encontro? Onde somos mais felizes? É ele que não bate no tempo e ritmo certo ou somos nós que não aceitamos o seu pulsar?
O coração aguenta feridas profundas, mágoas, tristezas, ressentimentos, erros, desvios, perigos, aguenta ficar alguns momentos debaixo de água e até mesmo parar… Mas depressa teremos de voltar a nós… reanimá-lo, alimentá-lo, amá-lo … se assim não for, corremos risco de morrer e ainda termos de viver uma longa vida sem coração. Como seria?
“Diz-se que Maria não compreendia. Mas que guardava tudo no seu coração.”
“(…) meditou-as e repensou-as com Deus no seu coração. Nada conservou para si, nada fechou na solidão, nem submergiu na amargura; tudo levou a Deus. Foi assim que guardou. Entretanto, guarda-se não deixando a vida à mercê do medo, do desânimo (…) não se fechando nem procurando esquecer, mas dialogando tudo com Deus.” (Homilia Papa Francisco)