Levantar o Céu

1. Na última sexta-feira entrei num "uber", de Cascais para Lisboa. Terminava uma semana de trabalho.
 
Saiu-me na rifa um pequeno carro, guiado por uma rapariga de cabelo cortado, com aspecto um tanto ou quanto masculino. 

Ao fim de uns 15 minutos de travagens bruscas e solavancos, metida por atalhos pelos arredores labirínticos e descaracterizados de bairros do concelho cascaense, a minha paciência estava a pontos de precisar de explodir...  aquela motorista não sabia conduzir.

Entretanto, abri a janela para respirar um pouco e, logo depois, comecei a entabular conversa: tinha uma voz fina e um tanto ou quanto inocente, pouco coincidente com o seu aspecto físico. 

Fomos falando até chegarmos a Lisboa. 

Era de "Minas", no Brasil, mas tinha crescido no Belém do Pará, junto à Amazónia. Tinha regressado há pouco tempo dos EUA (Boston e Nova York) onde estivera a trabalhar durante dois anos na Uber Eats - i.e., levando comida dos restaurantes a casa das pessoas. 

A rapariga volta e meia tinha umas interjeições e dizia "Ya", ao que eu perguntei "é porque vem dos EUA?!" Ela respondeu-me que não, que tem a ver com os africanos com quem se dá...

Mas continuemos... 

Contou-me que se ganhava muito bem em Nova York, que eles eram empregados da Uber (o que não acontece por Portugal, em que se tem que criar uma empresa ou trabalhar para uma), que o que fazia com que eles pudessem ganhar em certos casos 500 dólares por dia eram as generosas gorjetas. Disse-me que certo dia entregou algo muito simples a um senhor (tipo um donnut) e que este lhe deu uma gorjeta em dinheiro de 20 dólares. Ela voltou para trás e disse-lhe que talvez ele se tivesse enganado. "Não. é para si!". "Sabe, nos EUA, eles são muito simpáticos e apreciam muito quem trabalha?!", acrescentou a rapariga. "Eles trabalham muito porque a vida lá é muito cara". 

Contou-me também que já tinha vivido em França, em Inglaterra, na Dinamarca, mas que Portugal era o melhor sítio de todos pelo clima. E porque, em comparação, é mais barato viver por cá. "Se calhar os portugueses não dão por isso, mas este é o melhor país para se viver".

O que mais me impressionou nesta rapariga foi a sua generosidade. Esteve nos EUA e o dinheiro que lá juntou foi para ajudar a sua mãe que está no Brasil - que tem problemas de saúde. Disse-me que era o que a fazia feliz, ajudar os outros. Extraordinário - fiquei até um pouco envergonhado com este exemplo.

Esse era o primeiro dia que guiava um uber, espero que vá fazendo menos travagens bruscas e a fazer menos solavancos.

2. Esta semana também, creio que também na 6.ª feira, vi um documentário sobre o presidente americano Jimmy Carter, sob uma perspectiva que ignorava: a sua ligação à música e a importância que isso teve até na sua eleição.

Confesso que desconhecia a vida deste homem, não é aliás um presidente dos mais invocados na história recente americana. Não é um homem de grande carisma, ou de dotes oratórios. Penso até que não será um homem conhecido pela seu especial rasgo.

Ficamos no entanto atraídos por um sorriso constante na sua cara, um sorriso desarmante (por falar em sorrisos, não nos esqueçamos do sorriso desarmante de Mandela). É uma marca distintiva, um sorriso aberto e franco. Não há imagem em que ele não apareça sorridente, a bonomia parece ser efectivamente algo que o identifica. Parece ser um homem bom.

O documentário conta a sua relação com músicos como Johnny Cash, Willie Nelson ou Bob Dylan. Vivia-se uma época de um certo ideal revolucionário de que o amor iria salvar o mundo, à mistura com muita droga e muita música. Alguma desta música foi da melhor que se fez.

Jimmy Carter um homem do sul, duma pequena vila da Geórgia. Um homem simples, que cresceu no meio da cultura musical dos espirituais negros, pois na sua vila natal e nesse sul das antigas plantações, os negros são maioritários. Amante genuíno da música, que era engenheiro aero-espacial, com tradições familiares agrícolas e que nunca tinha tido nenhum membro que tivesse estudado, Jimmy Carter também escrevia poesia.

Com a música, que lhe estava assim no sangue, Jimmy Carter conseguiu que os grandes intérpretes vissem nele alguém que restaurava uma América apostada numa certa consciência, por contraste com os tempos anteriores de Nixon onde havia o sentimento generalizado de que a opinião pública de que a mentira proliferara. E depois de ganhar as eleições conseguiu também que a música se tornasse um dos seus principais instrumentos para unir um país, de grandes divisões raciais.

O documentário foca a principal crise que viveu na presidência, a invasão e sequestro de cerca de 50 americanos na Embaixada de Teerão, em retaliação por Carter ter recebido o Xá da Pérsia. O drama só acabou depois duma nova eleição, em que Reagan bate de forma arrasadora Carter (sobretudo devido aos problemas económicos que a América então vivia); mas Carter, acabado de sair do poder e regressado à sua vila natal, festeja até hoje o facto de no seu mandato não ter sido disparada uma bala. E que aqueles americanos tenham regressado a sãos e salvos ao seu país.

Carter e a sua mulher depois da presidência dedicaram-se a causas humanitárias e não há dúvida que ele foi merecedor do Prémio Nobel de 2002, por uma vida dedicada à paz e ao bem comum. Na cerimónia em que recebeu o prémio, Willie Nelson cantou a música, "Georgia", Estado donde ambos são originários.

3. Encontrei a Pilar Malheiro na rua e falámos sobre a nossa geração, a propósito do meu livro. Ela falou num termo que penso ser muito útil a explicar o dilema que vivemos: a chamada "armadilha económica", em que por mais que tentemos temos dificuldade em amealhar, em poupar e, assim, em fazer investimentos. A armadilha é que não conseguimos sair do mesmo sítio. Creio que é muita verdade isso. Os amigos que eu conheço que fizeram dinheiro foi por exemplo no turismo, que penso continuar a ser um sector relevante. 

Vinha eu então do Café Haus, o café austríaco onde tinha estado a ler um livro que comprei ontem: "Levantar o Céu - os labirintos da sabedoria". Bom livro. Algumas palavras dadas ao seu autor, José Mattoso:

«Ignorada pela alta finança, ofendida pelos políticos, agredida pela maioria da comunicação social, ameaçada pela cegueira da violência, desejada e praticada por muitos pobres, fracos e oprimidos, ameaçada pelos senhores da técnica, cultivada pelos místicos e contemplativos, esperança dos verdadeiros crentes de todas as religiões, aliada dos que respeitam a Natureza, sustentada pelos que buscam a beleza e a arte – a sabedoria está um pouco por toda a parte. Mas ninguém a vê

«A sabedoria vive no labirinto do mundo contemporâneo justamente por se esconder sob muitas formas. É ignorada por muitos que julgam possuí-la. Acredita na eficácia dos pequenos passos. Confia mais na qualidade do que na quantidade. Confere o dom de superar a contradição (o céu e a terra, o bom e o mau, o forte e o fraco, o pequeno e o grande). Sabe esperar a sua vez. Permanece e multiplica-se de forma incompreensível.»

«A minha proposta de “levantar o céu” tem subjacente a ideia de que é preciso temperar ou equilibrar o materialismo contemporâneo por meio de uma espiritualidade que pode envolver todas as manifestações da vida humana. A metáfora do caminho labiríntico que é preciso percorrer para encontrar a sabedoria do entender e do agir alude, de facto, à atual ambiguidade e reversibilidade de toda a linguagem, de toda a obra humana e de todas as ações, e à necessidade de superar as suas contradições. Tanto um conceito como o outro aludem a uma conciliação dos opostos que a civilização ocidental esqueceu, mas está bem viva na sabedoria oriental.»

António Marujo, Maria Leonor Nunes, in Público / Jornal de Letras (08.05.12)



4. Sem simplificações, pergunto se os exemplos dados acima não poderão em certa medida ajudar-nos a pensar no que é isso de "levantar o Céu"? I.e., que são pequenos gestos e passos e a riqueza às vezes escondida por trás duma generosa mas anónima rapariga do uber, ou de um sorriso franco e aberto dum presidente e do embalo das canções que se tocavam nos jardins da Casa Branca - onde se reuniam os políticos em ambiente descontraído e desarmado, que podem fazer toda a diferença.



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