Evasão

Uma das situações que pode tornar os dias da minha vida profissional de advogado mais interessantes, é que tendo por necessidade passar os olhos por tantas palavras e tantas frases, por vezes deparo-me com algo que abre portas à capacidade de me evadir do papel (ou melhor dito, do computador). 

Escreveu Flaubert em Madame Bovary "Tout notaire a rêvé des sultanes", talvez seja isso que explique que nos apeteça dar uma boa gargalhada, quando descobrimos que na mais prosaica situação encontramos algo insólito, que nos faz pensar que a realidade é muitíssimo mais rica do que poderíamos pensar. 

Na nossa profissão de juristas, ainda existem assuntos mais enfadonhos do que a análise de um plano local de urbanismo, mas certamente que poderíamos encontrar textos mais divertidos na nossa vida, se ao menos tivéssemos essa liberdade... Um plano director municipal é um regulamento administrativo que regula a ocupação de um determinado território municipal e diríamos que um qualquer exemplar dum desses planos, como o Plano Director Municipal de Oeiras que estava naquele dia a analisar, dificilmente me permitiria evocar as musas inspiradoras da poesia. 

E daí que talvez valha a pena reflectir duas vezes… e fazer como às vezes faço, começar algo pelo fim, uma revista por exemplo (no caso da Revista Lisboète o leitor está autorizado a começar sempre pelo meu texto…) 

É que chegados mesmo ao fim do dito regulamento do Plano Director Municipal de Oeiras, temos o Anexo III, que evoca nada mais nada menos que 31 naufrágios que surgem listados como património arqueológico sub-aquático do Município de Oeiras, justamente na parte em que o seu território banha os pés na entrada da barra do Tejo. As letras do computador ganham vida quando imaginamos as histórias bem reais que se escondem por detrás do texto bem ordenado de uma lista de naufrágios e outros tantos achados arqueológicos num documento como o Plano Director Municipal de Oeiras. Evadimo-nos tal qual notários que sonham em sultões e a nossa imaginação leva-nos a vogar peles águas e a quase a ouvir a voz das sereias, inspiradoras de poetas. Que histórias não haverá por detrás daquelas embarcações e das suas tripulações que sucumbiram aos rochedos e aos bancos de areia na entrada da barra do Tejo, já tão perto do porto de Lisboa?! Os especialistas dizem que se tratava dum último grande desafio a embarcações que já tinham atravessado o mundo (na Carreira das Índias, por exemplo), com tripulações cansadas, que ansiavam descansar de volta ao lar, onde as aguardavam as suas Penélopes que vezes sem conta já tinham feito e desfeito os seus novelos, no labor paciente das suas mãos.

A lista de naufrágios no Regulamento do Plano Director de Oeiras fala dos nomes desses navios, desde o séc. XVI naufragados perto do Forte de S. Julião da Barra ou do Bugio, tentando a entrada pelos estreitos canais de acesso do rio, barcos talvez demasiado carregados e em mau estado, sujeitos a fortes correntes e temporais. Um dos mais estudados desses navios é o Nossa Senhora dos Mártires, naufragado em 1606, com pimenta das Índias: atravessou todo o grande Oceano Índico e o Atlântico, mas sucumbiu nos rochedos, à entrada de Lisboa. A sua pimenta e os seus despojos espalharam-se, nomeadamente até à praia de Carcavelos e ainda hoje se encontram nas suas areias algo que restou do mesmo. A mesma praia onde tantas vezes fiz bodyboard na minha adolescência - e que jamais sonhara que por debaixo das suas ondas estivesse tanto mistério, memórias de viagens às longínquas Índias. Aliás são mais os navios da Carreira das Índias que se encontram nos fundos das águas do Estuário do Tejo e volta e meia nas notícias aparecem pescadores mergulhadores ou outros que se deparam com alguma descoberta, como canhões com a coroa portuguesa bem gravada. Crê-se que mais de 10% dos navios que faziam essa carreira se perderam para o fundo das águas e nos bancos de areia depositados ficaram tantos testemunhos mudos desses trajectos.

O nosso imaginário abre-se assim ao fascínio desse passado, aquele das histórias de infância, de marinheiros ou de exploradores de naufrágios.

Há uma dezena de anos, um desses exploradores de carne e osso, inglês, proprietário da empresa Blue Water Recoveries Ltd, dedicou-se a explorar na Costa de Omã, no Médio Oriente, o mais antigo navio ocidental descoberto até hoje. Pelo astrolábio descoberto, a rara moeda de prata que D. Manuel I terá mandado fazer e do qual só existirá mais um exemplar e do estudo apurado de quase 3.000 artefactos, tudo leva a crer tratar-se do Esmeralda, navio integrado na 2.ª esquadra de Vasco da Gama à Índia (1503), um dos dois navios comandados pelos irmãos Sodré, irmãos que dão o nome ao muito lisboeta Cais do Sodré, mais conhecido pelos lisboetas como "o Caixodré". A descoberta liga Portugal à terra dos sultões e é testemunho de uma rota histórica, que tem o outro contraponto no Porto de Lisboa.

Para um jurista como eu, nestas matérias abre-se todo um amplo campo de inquietação, vamos imaginar que estaria entre os despojos dum certo navio descoberto no Estuário do Tejo algo que poderia ser considerado muito valioso (por hipótese um astrolábio semelhante ao descoberto em Omã): de acordo com o Código Civil Código Civil, (art.º 1324.º) se alguém encontrar um "tesouro" (bens valiosos, sem dono conhecido), metade pertencerá ao Estado e metade ao descobridor. No entanto, todos os trabalhos arqueológicos subaquáticos têm de ser autorizados pelo Estado, com um projecto e direcção dos trabalhos por arqueólogo credenciado. Mas mais relevante ainda é que de acordo com a legislação de património cultural portuguesa os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional e de acordo com a lei “integram o património arqueológico subaquático todos os testemunhos da actividade humana que se encontrem total ou parcialmente submersos, de forma periódica ou contínua, há pelo menos 100 anos”. Pouca sorte então para caçadores de tesouros!

Deste lado, no Ocidente, além dos navios que faziam a Carreira das Índias, surpreende também a longa lista de embarcações naufragadas na barra do Tejo com nomes franceses como o Saint Charles (1669), o Le Dauphin Couronné (1673), Le Jules (1673), Le Vaillant (1684), Saint Pierre (1697), o Union (1733), o Jeanne Marie (1736), Toussaint (1736), o que evidencia uma já antiga forte ligação comercial com França.

O que acontece muitas vezes em situações que ligam dois ou mais países como o Sultanato de Omã a Portugal, ou que poderiam ligar Portugal a França no estudo e conservação de despojos arqueológicos submersos, é que prevalece a vontade de cooperar e de realizar intercâmbios científicos e culturais. Os vestígios normalmente passam a ser património do país nas águas territoriais onde se encontram depositados, mas podem desenvolver-se trabalhos de investigação conjuntos, exposições, etc. Foi isso que aconteceu por exemplo com os vestígios descobertos em Omã, que foram estudados por Tânia Casimiro, uma investigadora portuguesa e expostos já em Portugal.




Comentários

hps disse…
Excelente texto Duarte

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