Memórias


Naquele ribombar suave do mar, com a leveza tranquila de quem não tem pressa, uma família, unida pela alegria reconfortante da beleza do lugar e abençoada pelo relevo esverdeado e ritmado dos montes circundantes - de onde palram os grilos, conversa na tombadilha. O peixe inunda o espaço do fumo da grelha. Uma garrafa de branco dá-se em verso no copo de cada um, enquanto o barco balança ao som de Frank Sinatra.

Tempo para mais um mergulho ainda! Enquanto dum só salto se lança, uma recordação antiga reacende-se: aquele assomo da criança que tentava chegar à superfície da água da piscina, rasgando com braços nervosos a massa de água pela sua frente; um pai e uma mãe, um de cada lado, com os seu braços abertos, na aposta que ele conseguia! Ao princípio é assim: a confiança que lhe tinham era também a sua!
O orgulho em agradar aos seus pais, disso se faz muito o crescer duma criança. Um dia, dentro duma secretária de madeira, abrindo a tampa que se abria do alto, um cartão premiava o esforço dos primeiros passos na escola: “porque foste bom aluno, mereces vir connosco em viagem até Espanha!”. E por isso quis ser sempre bom aluno.

Naquela serra, de tobogã, deslizámos e rimo-nos, tinha sido a primeira vez que víramos neve. Estava muito frio nesse Natal em Madrid.

Talvez não se tenha constipado nessa ocasião, mas outro dia que ficou na sua memória - e lembra-se disso comentar com o seu primo mais velho, enquanto dava braçadas na piscina de um tal de Alexandre Bórgia -, faltou ao grande comício na Alameda. Estava doente. Também se lembra daquelas noites em que uma pasta de hortelã-pimenta se entranhava no peito de criança. Depois da massagem, dormia mais em paz. Por cima de si uma casinha de madeira, com Playmobils com que brincava, e, à sua volta, uns quadrinhos muito coloridos, com os cenários que uma mãe quer que habitem os sonhos das suas crianças - e que seja esse o mundo em que cresçam, sem arranhões e sem choros… pobres mães! Quem dera que o mundo fosse o da Disneylândia!
Os carros do pai foram-se sucedendo, com tamanho proporcional ao tamanho da família e… à progressão profissional do seu dono - só não mudava o direito a volta à Quinta na noite de estreia. Nas muitas viagens, esticado aos bancos da frente para ouvir a conversa, ao som de John Denver ou Simon & Garfunkel.
Da mãe, primeiro o Fiat 600, onde um exercício para encaixar 4 elefantes só mesmo bem arrumadinhos 2 à frente e 2 atrás! Mas depois, uma 4 L de latinha e mudanças de retranca, com vidrinhos que ficavam sempre encravados sobretudo quando alguém “mitá-la”…, um Golf pesado e um Honda Civic de corrida para o circuito da Estrada Velha, onde a Carly Simon ficaria muda se sentisse a velocidade; coisa que a Ermelinda sentia.
A caminho da Serra Nevada, a Renault já tinha 3 filas de bancos, o que no entanto não impediu que dois tivessem que ir de avião, numa escala em Madrid em que fez de irmão mais velho durante 6 horas - mas esse estatuto de irmão mais velho dura desde que nasceu o irmão que lhe seguiu, com um ano e meio de diferença.

Também de avião, do alto do céu, entre nuvens onde apetece deitar-nos e saltar – a lembrar um velho anúncio da Suchard, recorda-se dos montes nevados dos Alpes e dos seus lagos, apenas uma imagem da Europa, que correu entre férias e aulas para aprender línguas e dar braçadas para mais longe.
Como entidade orgânica, a casa adaptou-se e, da garagem, um dia, fez-se uma festa de anos, de dança! Alguns amigos perderam-se, outros mantiveram-se. Mas mais que adaptar-se, a casa cresceu nas pontas. Um quarto duns tornou-se quarto doutros.

A casa encheu-se, esvaziou-se, e volta a encher-se em dias de festa, com netos. Mas mais importante que tudo é o que não se vê na casa.
Recorda-se quando era pequeno:

“Era uma casa muito engraçada;
Nao tinha teto, não tinha nada
Ninguém podia entrar nela, não        
Porque na casa não tinha chão
Ninguém podia dormir na rede
Porque na casa nao tinha parede
Ninguém podia fazer pipi
Porque penico não tinha ali
Mas era feita com muito esmero
Na rua dos Bobos, número zero”.

Pode não ter paredes, pode não ter chão, pode não ter tecto, e ainda ser uma casa, se nela houver uma Mãe! Era sempre a primeira coisa que perguntava “a Mãe está?!”

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