2. Beleza e contemplação. Com tempo contemplo!
A arte não se inscreve naquele tipo de coisas que tem uma utilidade: tem mais que ver com o espiritual do que com o material, com aquela asserção de Cristo: "nem só de pão vive o Homem".
Qual a utilidade de uma rosa? Nenhuma aparentemente. Mas porque plantamos rosas?! Não seria porventura bem mais útil plantarmos couves e batatas, que nos dão de comer?! É porque também responde a uma necessidade que o fazemos: porque torna a nossa vida mais bonita. Por isso vamos também a concertos de música clássica ou colocamos um belo quadro na parede. Na realidade, parece assim que há uma utilidade, uma utilidade interior.
O belo tem a virtude de abrir-nos às nossas necessidades últimas, aos nossos anseios mais profundos. Ele abala-nos, faz com que as nossas defesas caiam.
Edgar Morin dizia-nos que a finalidade primeira da arte é colocar-nos no estado poético, por contraste com o estado de prosa com que as nossas vidas se contam, na soma dos dias. Em certa medida, a arte é parêntesis, suspensão: aquilo que passa mais a contar é a nossa sensibilidade que nos liga à fonte interior, à nossa vida emocional.
Alain de Botton e Jack Armstrong no seu livro "Art as Therapy" enumeram as virtualidades que ela tem duma forma que corresponde ao dissecar de uma rosa: ela lembra-nos o jardim dos nossos avós, evoca-nos esse tempo de infância em que corríamos por entre os canteiros nos jogos de escondidas, dá-nos a esperança por um futuro belo como ela; acalma-nos na sua suavidade, reequilibra-nos nas nossas tensões - e mais coisas poderíamos retirar da observação duma rosa, ao permanecermos atentos diante dela, numa experiência sensorial com os sentidos todos convocados.
Alain de Botton e Jack Armstrong no seu livro "Art as Therapy" enumeram as virtualidades que ela tem duma forma que corresponde ao dissecar de uma rosa: ela lembra-nos o jardim dos nossos avós, evoca-nos esse tempo de infância em que corríamos por entre os canteiros nos jogos de escondidas, dá-nos a esperança por um futuro belo como ela; acalma-nos na sua suavidade, reequilibra-nos nas nossas tensões - e mais coisas poderíamos retirar da observação duma rosa, ao permanecermos atentos diante dela, numa experiência sensorial com os sentidos todos convocados.
E é justamente aqui que gostaria de chegar: a importância da contemplação. Faço um jogo que dá aliás nome a este texto (na verdade quase um pleonasmo): com tempo contemplo. Esse estado poético que Edgar Morin fala acaba por ser estarmos "com tempo". Não se reduz a um fazer maquinal, medido pelos ponteiros do relógio. São momentos para estar, para olharmos e louvarmos a vida.
Que momentos no nosso dia-a-dia temos para viver nesse estado "poético"?!
O famoso violinista Menuhin conta em "Beauty and Consolation" https://www.youtube.com/watch?v=4C02kWW_6qk conta que um dos dias mais felizes da sua vida foi quando depois de ter dado um miserável concerto no Norte de Itália - esquecera-se do dia do concerto, fizera uma confusão e, de repente, ligam para o seu hotel e perguntam: "onde está?! Venha rápido que está na hora do concerto" - pede um bilhete na estação de combóios para Veneza para fugir dali... Quando já estava deslizando, baloiçando numa gondola ao longo dos canais, naquela beleza, sobreveio-lhe uma tal paz interior que o fez por completo esquecer-se do terrível concerto dado pouco tempo antes. Uma cidade pode ser como um quadro belo, com a diferença que na cidade somos imersos pelos cinco sentidos!
O famoso violinista Menuhin conta em "Beauty and Consolation" https://www.youtube.com/watch?v=4C02kWW_6qk conta que um dos dias mais felizes da sua vida foi quando depois de ter dado um miserável concerto no Norte de Itália - esquecera-se do dia do concerto, fizera uma confusão e, de repente, ligam para o seu hotel e perguntam: "onde está?! Venha rápido que está na hora do concerto" - pede um bilhete na estação de combóios para Veneza para fugir dali... Quando já estava deslizando, baloiçando numa gondola ao longo dos canais, naquela beleza, sobreveio-lhe uma tal paz interior que o fez por completo esquecer-se do terrível concerto dado pouco tempo antes. Uma cidade pode ser como um quadro belo, com a diferença que na cidade somos imersos pelos cinco sentidos!
O belo é difícil de definir, transparece através daquilo que nos comove, mesmo na fealdade... Nesse caso, Rembrandt ou Van Gogh são paradigmáticos: os auto-retratos dum e doutro representam homens que passaram/passavam por muitas tormentas interiores. Eles não pintam o fácil, a doçura. Pintam o sofrimento, a agonia.
Van Gogh surge-nos dilacerado, orelha cortada, trapos à volta da cabeça, não sabemos se para esconder a vergonha da contusão, se para estancar a hemoragia.
A intensidade dos grandes Mestres, a forma como nos pintam as suas experiências mais dolorosas são como pérolas: uma pérola nasce da infecção. "É preciso muito caos para parir uma estrela", já alguém dizia. Por isso muita da melhor arte só está ao alcance da nossa compreensão depois de termos experimentado nas nossas vidas a perda, a orfandade, o abandono, a frustração, o medo profundo, a tristeza. Essa arte transporta-nos para o indecifrável das nossas vidas, para as nossas fragilidades e para uma identificação com o que é ser-se humano e viver neste mundo em que cada um se sente - e sente, de forma única, carente de amor e compreensão.
A experiência estética tem assim que ver com a maturidade e é preciso ter já uns aninhos para perceber Rembrandt nas suas fases derradeiras: aquele Rembrandt que não pinta já a sociedade burguesa de Amesterdão, mas que se vira para dentro de si, abandonado por todos - e sem já por perto a sua amada que morrera -, em que das suas sombras o traço faz-nos descobrir a experiência intensa dum homem que escreve a sua vida mais com os olhos da alma do que com o que os seus olhos exteriores, os da cara, vêem.
Ernesto Sabato, um escritor argentino escreveu no seu pequeno livro quase testamento-protesto "Resistir" que "um luxo verdadeiro é um encontro humano, um momento de silêncio perante a criação, o gozo de uma obra de arte ou de um trabalho bem feito. Gozos verdadeiros são aqueles que embargam a alma de gratidão e nos predispõem ao amor.
Quantas vezes aconselhei aqueles que me pedem ajuda, na sua angústia e no seu desalento, que se dedicassem à arte e se deixassem invadir pelas forças invisíveis que operam em nós. Todas as crianças são artistas que cantam, bailam, pintam, contam histórias e constroem castelos. Os grandes artistas são pessoas estranhas que conseguiram preservar no fundo da sua alma a sagrada candura da infância e dos homens que chamamos primitivos, e por isso provocam o riso dos estúpidos.
A arte é um dom que cura a alma dos fracassos e dos dissabores. Anima-nos a cumprir a utopia a que fomos destinados."
Quantas vezes aconselhei aqueles que me pedem ajuda, na sua angústia e no seu desalento, que se dedicassem à arte e se deixassem invadir pelas forças invisíveis que operam em nós. Todas as crianças são artistas que cantam, bailam, pintam, contam histórias e constroem castelos. Os grandes artistas são pessoas estranhas que conseguiram preservar no fundo da sua alma a sagrada candura da infância e dos homens que chamamos primitivos, e por isso provocam o riso dos estúpidos.
A arte é um dom que cura a alma dos fracassos e dos dissabores. Anima-nos a cumprir a utopia a que fomos destinados."
Comentários
Poderá ela nascer de felizes encontros com a vida? Poderá ela nascer de momentos simples, leves e ingénuos… porem intensos e verdadeiros. É como chegar a uma paisagem e ficarmos “embasbacados” e sermos invadidos por um sentimento de adrenalina que nos invoca. E desse momento poderá ou não nascer qualquer coisa que chegará aos outros e ao mundo como arte.
Quero com isto dizer que acredito na leveza da arte, na liberdade que a criação pode trazer, no sentimento leve e inebriado quase como uma” boa droga” que é tomada… apenas porque nos predispusemos a isso. A sentirmo-nos, a ouvir-nos a influenciarmo-nos com o que está à nossa volta e não apenas centrarmo-nos nas nossas dores e angústias, até porque este pode ser um caminho totalmente bloqueador do espírito.
Talvez me faltem anos de vida, para chegar à conclusão que estou totalmente errada, e que o espírito criativo nascerá, sempre, da nossa total angustia e desordem. E que a forma como respondemos a tudo isto, para alguns, será épica e ficará na história da humanidade.
Pobre Arte, tornada como um remédio raro, como um dom, na cura dos nossos males… para mim redutor… falta-me, neste texto, todo o lado belo, divino, inspirador… acho que é isso.