Médicos e Advogados


Ouvir um advogado da velha guarda é como ouvir o século XX, ou o século XIX, ou qualquer outra centúria ainda marcada pelas artes liberais. A figura clássica e em vias de extinção do advogado letrado é mesmo a nostálgica corporização do passado que está a desaparecer como a areia de uma ampulheta quebrada. Sim, em vias de extinção: o advogado clássico, homem de leis e letras, está para a sociedade como o lince está para a natureza. E esta rarefação do advogado é dramática para a sociedade, em primeiro lugar, e para os próprios advogados, em segundo lugar. Um jovem advogado que perceba apenas e só de leis está condenado, será um técnico de leis facilmente substituído pelo algoritmo. Para ser um advogado com uma compreensão da sociedade e do ser humano, o jovem amanuense das leis precisa de literatura, cinema, história, antropologia. E passa-se o mesmo com os médicos.

Ainda há dias, ouvi um médico e professor de medicina dizer que é urgente recolocar as humanidades no centro do curso de medicina. Claro que a medicina tem um método científico que não é igual à acumulação de conhecimento da história ou antropologia, mas as humanidades têm de ser o coração dos cursos de medicina por duas razões. Em primeiro lugar, o médico não pode ser só uma máquina de diagnóstico. Eu, como doente, não sou apenas um conjunto de fluídos, órgãos e músculos, tenho uma alma. E o médico tem de saber enfrentar e falar com essa alma. Aliás, a figura do médico-escritor nascia nesta fusão entre alma e corpo. Ora, hoje em dia, as pessoas são cada vez mais atraídas pelas neobruxarias (as chamadas "medicinas alternativas"), porque a medicina tornou-se demasiado distante. O médico-escritor deu lugar ao médico-técnico de diagnóstico. Aproveitando esta frieza, os neobruxos garantem aos doentes algo que escapa à medicina: a empatia. Em segundo lugar, se são apenas máquinas de diagnóstico, então os médicos serão facilmente substituídos por algoritmos. E esse é um cenário de depressão civilizacional e de perigo para a nossa saúde, pois há algo de fundamental na medicina que está fora do alcance dos algoritmos: a biografia do doente; fazer a história clínica do doente e conseguir estabelecer paralelos e ligações que só são possíveis através da sensibilidade humana. Ou seja o médico tem de olhar para o doente como o escritor olha para uma personagem.
Neste século, o Ocidente criou uma civilização técnica e amoral que não tem respostas morais para os problemas, isto é, não temos narrativas. Os advogados correm o risco de perder qualquer visão moral da sociedade e os médicos estão moralmente desarmados para confrontar a fragilidade antes da doença. Este vazio só pode ser preenchido por um direito e por uma medicina abraçados à literatura e às ciências sociais. Ao longo dos cursos, entre artérias e acórdãos, os jovens médicos têm que ser confrontados com os dilemas médicos e morais da "Servidão Humana" ou da "Montanha Mágica" e os futuros juristas têm que ser confrontados com os dilemas morais e legais do "Billy Budd". Quero viver numa civilização moral de médicos e advogados, não quero viver na monarquia amoral dos algoritmos.

Henrique Raposo, in "Expresso", 14 Dezembro 2019

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