Médicos e Advogados
Ainda há dias, ouvi um médico e professor de medicina dizer que é urgente recolocar as humanidades no centro do curso de medicina. Claro que a medicina tem um método científico que não é igual à acumulação de conhecimento da história ou antropologia, mas as humanidades têm de ser o coração dos cursos de medicina por duas razões. Em primeiro lugar, o médico não pode ser só uma máquina de diagnóstico. Eu, como doente, não sou apenas um conjunto de fluídos, órgãos e músculos, tenho uma alma. E o médico tem de saber enfrentar e falar com essa alma. Aliás, a figura do médico-escritor nascia nesta fusão entre alma e corpo. Ora, hoje em dia, as pessoas são cada vez mais atraídas pelas neobruxarias (as chamadas "medicinas alternativas"), porque a medicina tornou-se demasiado distante. O médico-escritor deu lugar ao médico-técnico de diagnóstico. Aproveitando esta frieza, os neobruxos garantem aos doentes algo que escapa à medicina: a empatia. Em segundo lugar, se são apenas máquinas de diagnóstico, então os médicos serão facilmente substituídos por algoritmos. E esse é um cenário de depressão civilizacional e de perigo para a nossa saúde, pois há algo de fundamental na medicina que está fora do alcance dos algoritmos: a biografia do doente; fazer a história clínica do doente e conseguir estabelecer paralelos e ligações que só são possíveis através da sensibilidade humana. Ou seja o médico tem de olhar para o doente como o escritor olha para uma personagem.
Neste século, o Ocidente criou uma civilização técnica e amoral que não tem respostas morais para os problemas, isto é, não temos narrativas. Os advogados correm o risco de perder qualquer visão moral da sociedade e os médicos estão moralmente desarmados para confrontar a fragilidade antes da doença. Este vazio só pode ser preenchido por um direito e por uma medicina abraçados à literatura e às ciências sociais. Ao longo dos cursos, entre artérias e acórdãos, os jovens médicos têm que ser confrontados com os dilemas médicos e morais da "Servidão Humana" ou da "Montanha Mágica" e os futuros juristas têm que ser confrontados com os dilemas morais e legais do "Billy Budd". Quero viver numa civilização moral de médicos e advogados, não quero viver na monarquia amoral dos algoritmos.
Henrique Raposo, in "Expresso", 14 Dezembro 2019
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