Beleza e Contemplação
A aceleração temporal faz com que
vivamos ao ritmo da comunicação e como esta cresceu muitíssimo, temos acesso a
muita informação. Informação que temos dificuldade em digerir. Como diz Charles
Landry, urbanista inglês que aborda o aumento exponencial da invasão sensorial
nas nossas cidades (in “Paisagem Sensorial das Cidades”, Building
Ideas, 2017) “cada vez mais, a nossa primeira sensação (…) é a de excesso de
informação, o que nos faz sentir que as coisas estão fora de controlo”.
Diz-nos ele que “quer a publicidade quer os meios de comunicação procuram
preencher com os mais estridentes tons e sons, os desejos de cada um. Há toda
uma distração, perca de atenção, de concentração e de foco”.
A dispersão crónica em que muitas
vezes vivemos tem consequências gravíssimas em termos de saúde mental. O mundo
exterior envia-nos tantos dados contraditórios e todos lutam por ganharem na
guerra da nossa atenção.
Se não sabemos proteger-nos da
agressão exterior, ficaremos contaminados por tanta poluição e andaremos para onde
sopra o vento, tal qual catavento. Isto gera inseguranças e ansiedade, porque
soçobrando frente à força dos factos exteriores perdemos a nossa ligação ao
nosso eu profundo, anulando-o. Mas esse eu interior continua a existir, mesmo
que na obscuridade, desalinhado com aquilo que escolhemos, em decisões tão
pouco reflectidas.
O mundo exterior obriga-nos a
respostas rápidas. Por aí se vê que tantas decisões no campo político e
empresarial – e se calhar também pessoais, sejam tão pouco preparadas, o que
resulta num descrédito nos nossos líderes e, mais grave, num enfraquecimento
das instituições. Parece que vivemos à semelhança do jogo das cadeiras em que
se não escolhemos rapidamente a nossa cadeira ficaremos de pé, sem cadeira, e
que as interrupções da música sãos cada vez mais frequentes.
Na contracapa da edição
portuguesa do livro de Byung-Chul Han (A Sociedade do Cansaço, Relógio d’Água
2014) faz-se uma curta e eloquente apresentação dalgumas das mais discutidas
ideias deste filósofo: “De acordo com Byung-Chul Han, uma das mais
inovadoras vozes filosóficas surgidas na Alemanha, o Ocidente está a tornar-se
uma sociedade do cansaço. Segundo este autor germano-coreano, qualquer época
tem as suas doenças características. Houve uma época bacteriana, que terminou
com a descoberta dos antibióticos. A época viral foi ultrapassada através das
técnicas imunológicas, apesar dos periódicos receios de uma pandemia gripal [1].
O início do século XXI, do
ponto de vista patológico, seria sobretudo neuronal. A depressão, as
perturbações de atenção devidas à hiperactividade e a síndroma do desgaste
profissional definem o panorama atual”.
No interior deste pequeno livro,
Byung-Chul Han desenvolve a sua perspectiva e diz-nos que o “cansaço da
sociedade da produção é um cansaço individual, um cansaço que separa e isola.
Trata-se daquele cansaço que Handke (…) designa como «cansaço alienante»: os
dois já caíamos sem parar, cada um no seu cansaço muito próprio e individual,
cada um para seu lado, não no nosso cansaço, mas no meu cansaço, por um lado, e
no teu cansaço, por outro”. Este cansaço alienante provoca no
individuo a incapacidade de ver e o mutismo”.
Diz-nos Vasco Pinto de
Magalhães que só “avança quem descansa”.
É muito importante criarmos um
equilíbrio na nossa vida entre acção e contemplação. A sabedoria de velhas
práticas agrícolas em que os campos depois de cultivados ficam em pousio
pode-nos ensinar muito sobre o que é a regeneração. O tempo de descanso é um
tempo para deixarmos aflorar em nós o nosso eu profundo. Para deixar respirar o
nosso corpo, as nossas fibras. Para nos deixarmos ser e estar simplesmente. As
férias devem ser tempo de paragem.
Encontro muita paz na natureza e
aprecio caminhar. Gosto também de dar bons mergulhos no mar.
Discernir tem que ver com a
capacidade de ver a realidade, de pesar as coisas e as opções, vendo o fundo
das questões à luz de valores, traçando uma direcção. Não devemos ser autómatos
a disparar para todos os lados, respondendo a todos os estímulos exteriores mal
eles se nos apresentam. Isto não quer dizer que devamos ser rígidos, com um
plano muito bem traçado. Não, a realidade pede-nos que sejamos tacticamente
flexíveis, mas devemos pensar primeiro no que pretendemos que seja o fio
condutor da nossa acção. Há aqui naturalmente o emprego da disciplina, um
exercício de reflexão e de avaliação regular para que, quando nos colocamos em
acção, ela seja motivada por um trabalho prévio interior.
Para que possamos empregar estas
nossas capacidades, temos porém que estar em condições para o fazer, precisamos
de encontrar paz na nossa vida. Temos que estar com saúde, bem dormidos, com
tranquilidade…
[1] Entretanto, mal prevíamos nós entrar numa
pandemia geral no ano de 2020, em que a nossa maneira de viver tem sido tanto
posta à prova...
Texto para meditar
Eu uso a oração como um escuro muro protector, na oração retiro-me como se estivesse na cela de um convento e, depois, saio cá para fora, mais «una» e fortalecida e mais completa. Recolher-me na cela fechada da oração torna-se para mim uma realidade cada vez maior e também uma necessidade. Esta concentração interior ergue muros altos em meu redor, dentro dos quais novamente me reencontro, formo um todo, fora do alcance de todas as dispersões. E consigo imaginar que pode vir uma época em que me encontrarei ajoelhada dias a fio, até finalmente sentir que surgiram muros protectores à minha volta, dentro dos quais não me posso dispersar, nem perder-me, nem arrasar-me. (Filipe Condado e José Tolentino de Mendonça, in “Nos Passos de Etty Hillesum”, Documenta 2019)
Texto para meditar
Um dos filósofos mais originais e
discretos do século XX, o russo Pavel Florenskij, escreveu: “A nossa vida
escapa-nos como um sonho, e é possível não chegar a tempo de fazer coisa alguma
neste breve instante que é a vida. Por isso, é necessário aprender a arte de
viver, a mais difícil e a mais importante das artes: a capacidade de conferir a
cada hora um conteúdo substancial, conscientes de que aquela hora não tornará
jamais.” Pode, de facto, acontecer-nos “não chegar a tempo” até
porque, precisamente o tempo, é uma alta febre que nos toma e que, não raro,
nos atira borda fora da nossa própria embarcação. Desde que ganhámos
consciência de que estamos dentro do tempo, de que somos seres amassados na
argila do tempo, deixámos de ter tempo. A nossa vida, quase por completo, está
destinada ao fazer e ao produzir, a essa luta certamente áspera, monótona ou
dilacerante, mas também apaixonada, envolvente e, à sua maneira, vital. Na
verdade, não há, à partida, nenhum problema com a vida ativa da qual
dependemos, e não só para garantir a basilar luta pela sobrevivência. O coágulo
forma-se quando a atividade se torna o fim e nós os instrumentos; quando, manhã
após manhã, o espelho testemunha como nos estamos a transformar em elementos
puramente instrumentais de uma vida que já não quer saber de nós. Muitas vezes,
a esse lampejo de consciência, reagimos pressionando ainda com mais força o pé
contra o acelerador, deixando-nos ir, aceitando que não nos resta outra forma
de aceitar a temporalidade. E tentamo-nos consolar dizendo: “não tenho vida,
mas tenho coisas”, “não tenho tempo para nada, mas adquiro poder de compra”.
As nossas sociedades falta uma
reflexão séria sobre a completude da experiência humana e sobre as
reivindicações — a maior parte delas sufocada — por um estilo de vida mais
equilibrado. O dever ou o direito de fazer não tem de se construir sacrificando
a toda a linha o dever ou o direito de ser. A estimulação para o ativismo não
tem de ser tão brutal que insista em queimar — com a rapidez com que arde um fósforo
— todos os recursos, exteriores e interiores, que alguém possui para viver. A
pressa não pode ignorar por completo a lentidão.
A vida ativa não tem
necessariamente de suprimir a necessidade que cada um de nós sente de
contemplação.
Vêm-me ao pensamento os versos do
“Canto Noturno de um Pastor Errante da Ásia”, do poeta Giacomo Leopardi: “Que
fazes tu no céu, ó lua? Diz-me/que fazes, silenciosa lua? (…)/ Diz-me o lua,
afinal/ que vale ao pastor a sua vida,/ ou para que te serve a ti a tua?
Diz-me para que direção/ caminha este meu breve vagar/ e para onde se dirige o
teu curso imortal”
Na composição, o pastor errante
contempla a lua. Com que necessidade? Em busca de quê? Em busca de uma
profundidade que nunca conseguiremos atingir completamente, mas na qual
precisamos de nos sentir imersos. Há um horizonte mais amplo, para lá da
resolução individual da minha existência: ficarei incompleto, alguma porção
essencial de mim ficará por se desenvolver, se nunca tiver chegado
verdadeiramente a confrontar o “meu breve vagar” com o “curso imortal”. Na
língua latina a palavra contemplação deriva da junção de dois termos: cum e
templum, que indicava na antiguidade o espaço aberto nas cúpulas para que se
interpretassem os sinais do futuro. Contempla é não apenas introduzir uma
benéfica lentidão no nosso olhar. É também colher o tempo da vida como um
tecido relacional, uma intersecção dialógica que dilata ao infinito o sentido
da nossa existência.
José Tolentino
Mendonça, in Expresso 18 de Julho de 2020
A Espiritualidade da Beleza
Um dos poucos autores espirituais
que têm sensibilidade para o tema "beleza e espiritualidade" é Carlo
Maria Martini, antigo cardeal de Milão:
"Não adianta
deplorar e culpar todo o mal que há no nosso mundo. (...) Tampouco adianta
falar de justiça, de deveres, de bem comum, de programas pastorais, das
exigências do Evangelho. Se quisermos falar disso, que o façamos com o coração
cheio de ardente amor. Temos de experimentar aquele amor que dá com alegria e
que entusiasma; temos de irradiar a beleza daquilo que é verdadeiro e correcto
na vida; pois só essa beleza pode tomar conta do íntimo e direccioná-las para
Deus".
Martini sente que hoje uma
espiritualidade puramente ascética ou moralizante não atrai mais as
pessoas. É preciso a beleza que as fascina. Martini refere-se à
beleza do mundo, do amor, das pessoas que se deixam conduzir pelo amor. Fala da
beleza da mensagem bíblica, da beleza redentora, cuja expressão mais radiante
foi a do amor por nós na cruz, da beleza salvadora que resplandece diante de
nós na Páscoa. Toda a mensagem da fé cristã é descrita sob o aspecto da beleza.
Existe uma espiritualidade que se
limita a fazer exigências. Ela exige de nós que superemos o mal. Mas então, às
vezes ocorre que ela está exageradamente fixada no mal, no pecado e na culpa.
Ou exige que estejamos comprometidos socialmente. Ela quer mudar o
mundo. Sem dúvida, esse é um aspecto essencial da espiritualidade cristã.
No entanto, quando mudar se converte em exigência demasiada, a espiritualidade
frequentemente perde a sensibilidade para aquilo que já está aí, para o que
encontramos no mundo.
O belo já aí está. Ele
fascina-nos e move-nos por si só a cultivar e cuidar deste mundo,
resguardar e proteger o belo e organizar o mundo como Deus quer. Uma
espiritualidade que percebe o belo também resulta noutra imagem de Deus.
Desaparece o Deus contabilista e controlador, o Deus que pune e julga, e
aparece o Deus que, por essência é criatividade, que tem paixão por criar
coisas belas. Deus manifesta-se assim como luz que nos ilumina e brilha diante
de nós na criação. E Deus é aquele que sacia o nosso mais profundo anseio por
desfrutar das coisas. Deus é a verdadeira beleza que podemos apreciar com
admiração e devoção.
Uma espiritualidade que passa ao
largo da beleza do mundo facilmente se torna uma espiritualidade ascética ou
mesmo moralizante. Ela parte constantemente daquilo que o ser humano deveria
ser ou fazer. Contudo, quando nos voltamos para o belo, o nosso ponto de
partida não são as deficiências do ser humano. Percebemos, muito antes, a
plenitude e a beleza da vida, como nos foi presenteada por Deus. Trata-se de
uma espiritualidade receptiva. É também uma espiritualidade da gratidão por
tudo o que recebemos diariamente.
O ser humano espiritual não é
aquele que fecha os olhos e se limita a ascultar o seu íntimo, embora essa seja
sem dúvida um aspecto da espiritualidade. Igualmente importante, porém, é que
abramos os olhos e olhemos para aquilo que Deus nos mostra diariamente: a
beleza da paisagem, a delicadeza das flores, a magnífica força das montanhas, o
soprar do vento, o raiar do sol, o canto dos pássaros, o brincar dos peixes na
água.
Essa espiritualidade que desloca
a beleza para o centro perde todo o aspecto duro, abafado e escuro, que tantas
vezes marcou a espiritualidade cristã nos últimos séculos.
É uma espiritualidade da alegria, da vivacidade, da liberdade.
Texto adaptado de Anselm Grun,
"Beleza, uma nova espiritualidade da alegria de viver", Editora Vozes
Texto para meditar
Palavras do Papa Bento XVI,
Encontro com os Artistas, 21 de Novembro de 2009:
“Infelizmente, o momento actual
está marcado não só por fenómenos negativos a nível social e económico, mas
também por um esmorecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas
relações humanas, e por isso crescem os sinais de resignação, agressividade e
desespero. Depois, o mundo no qual vivemos corre o risco de mudar o seu rosto
devido à obra nem sempre sábia do homem o qual, em vez de cultivar a sua
beleza, explora sem consciência os recursos do planeta para vantagem de poucos
e não raramente desfigura as suas maravilhas naturais. O que pode voltar a dar
entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o
caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua
vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a
experiência do belo, do belo autêntico, não efémero nem superficial, não é algo
acessório ou secundário na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência
não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a
vida quotidiana, para o libertar da obscuridade e o transfigurar, para o tornar
luminoso, belo.
De facto, uma função essencial da verdadeira beleza, já evidenciada por Platão, consiste em comunicar ao homem um "sobressalto" saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o quotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente desta forma o "desperta" abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o. A expressão de Dostoievsky que estou para citar é sem dúvida ousada e paradoxal, mas convida a reflectir: "A humanidade pode viver - diz ele - sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto".
Faz-lhe eco o pintor Georges
Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência
tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao
homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança,
dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência. A busca da
beleza da qual falo, evidentemente, não consiste em fuga alguma no irracional
ou no mero esteticismo».
A Arte
A arte não se inscreve naquele
tipo de coisas que tem uma utilidade: tem mais que ver com o espiritual do
que com o material, com aquela asserção de Cristo: "nem só de pão vive o
Homem".
Qual a utilidade de uma rosa?
Nenhuma aparentemente. Mas porque plantamos rosas?! Não seria porventura bem
mais útil plantarmos couves e batatas, que nos dão de comer?! É porque também
responde a uma necessidade que o fazemos: porque torna a nossa vida mais
bonita. Por isso vamos também a concertos de música clássica ou colocamos um
belo quadro na parede. Na realidade, parece assim que há uma utilidade, uma
utilidade interior.
O belo tem a virtude de abrir-nos
às nossas necessidades últimas, aos nossos anseios mais profundos. Ele
abala-nos, faz com que as nossas defesas caiam.
Edgar Morin dizia-nos que
a finalidade primeira da arte é colocar-nos no estado poético, por
contraste com o estado de prosa com que as nossas vidas se contam, na soma dos
dias. Em certa medida, a arte é parêntesis, suspensão: aquilo que passa mais a
contar é a nossa sensibilidade que nos liga à fonte interior, à nossa vida
emocional.
Alain de Botton e Jack Armstrong
no seu livro "Art as Therapy" enumeram as virtualidades que ela tem
duma forma que corresponde ao dissecar de uma rosa: ela lembra-nos o jardim dos
nossos avós, evoca-nos esse tempo de infância em que corríamos por entre os
canteiros nos jogos de escondidas, dá-nos a esperança por um futuro belo como
ela; acalma-nos na sua suavidade, reequilibra-nos nas nossas tensões - e mais
coisas poderíamos retirar da observação duma rosa, ao
permanecermos atentos diante dela, numa experiência sensorial com os
sentidos todos convocados.
E é justamente aqui que gostaria
de chegar: a importância da contemplação. Faço um jogo que dá aliás nome a este
texto (na verdade quase um pleonasmo): com tempo contemplo. Esse estado
poético que Edgar Morin fala acaba por ser estarmos "com
tempo". Não se reduz a um fazer maquinal, medido pelos ponteiros do
relógio. São momentos para estar, para olharmos e louvarmos a vida.
Que momentos no nosso dia-a-dia
temos para viver nesse estado "poético"?!
O famoso violinista Menuhin conta
em "Beauty and Consolation conta que um dos dias mais felizes da sua
vida foi quando depois de ter dado um miserável concerto no Norte de Itália - esquecera-se
do dia do concerto, fizera uma confusão e, de repente, ligam para o seu hotel e
perguntam: "onde está?! Venha rápido que está na hora do concerto" -
pede um bilhete na estação de combóios para Veneza para fugir dali... Quando já
estava deslizando, baloiçando numa gondola ao longo dos canais, naquela beleza,
sobreveio-lhe uma tal paz interior que o fez por completo esquecer-se do
terrível concerto dado pouco tempo antes. Uma cidade pode ser como um
quadro belo, com a diferença que na cidade somos imersos pelos cinco sentidos!
O belo é difícil de definir,
transparece através daquilo que nos comove, mesmo na fealdade... Nesse
caso, Rembrandt ou Van Gogh são paradigmáticos: os auto-retratos dum e doutro
representam homens que passaram/passavam por muitas tormentas interiores. Eles
não pintam o fácil, a doçura. Pintam o sofrimento, a agonia.
Van Gogh surge-nos dilacerado, orelha cortada, trapos à volta da cabeça, não sabemos se para esconder a vergonha da contusão, se para estancar a hemoragia.
A intensidade dos grandes
Mestres, a forma como nos pintam as suas experiências mais dolorosas são como
pérolas: uma pérola nasce da infecção. "É preciso muito caos
para parir uma estrela", já alguém dizia. Por isso muita da melhor arte só
está ao alcance da nossa compreensão depois de termos experimentado nas nossas
vidas a perda, a orfandade, o abandono, a frustração, o medo profundo, a
tristeza.
Essa arte transporta-nos para o
indecifrável das nossas vidas, para as nossas fragilidades e para uma identificação
com o que é ser-se humano e viver neste mundo em que cada um se sente - e
sente, de forma única, carente de amor e compreensão. A experiência
estética tem assim que ver com a maturidade e é preciso ter já uns aninhos para
perceber Rembrandt nas suas fases derradeiras: aquele Rembrandt que não pinta
já a sociedade burguesa de Amesterdão, mas que se vira para dentro de si,
abandonado por todos - e sem já por perto a sua amada que morrera -, em que das
suas sombras o traço faz-nos descobrir a experiência intensa dum homem que
escreve a sua vida mais com os olhos da alma do que com o que os seus olhos
exteriores, os da cara, veem.
Ernesto Sabato, um escritor
argentino escreveu no seu pequeno livro quase testamento-protesto
"Resistir" que "um luxo verdadeiro é um encontro humano, um
momento de silêncio perante a criação, o gozo de uma obra de arte ou de um
trabalho bem feito. Gozos verdadeiros são aqueles que embargam a alma de
gratidão e nos predispõem ao amor.
Quantas vezes aconselhei aqueles
que me pedem ajuda, na sua angústia e no seu desalento, que se dedicassem à
arte e se deixassem invadir pelas forças invisíveis que operam em nós. Todas as
crianças são artistas que cantam, bailam, pintam, contam histórias e constroem
castelos. Os grandes artistas são pessoas estranhas que conseguiram preservar
no fundo da sua alma a sagrada candura da infância e dos homens que chamamos
primitivos, e por isso provocam o riso dos estúpidos.
A arte é um dom que cura a alma
dos fracassos e dos dissabores. Anima-nos a cumprir a utopia a que fomos
destinados."
Se me pedissem para escolher um
quadro, uma escultura, um qualquer objecto de arte, o que traria comigo?
Gosto muito de Monet e das suas
paisagens. A pintura impressionista é bela e dá alegria à vida.
Há um pintor holandês que me
impressiona pelos ambientes interiores que cria, seu nome é Vermeer. Ele pinta
o simples, pinta as pessoas no seu ambiente natural. Penso que é George Steiner
que dizia que ele é tão bom que consegue pintar o silêncio.
Dos pintores que mais me comovem
certamente que Cézanne é um deles. Eu acho que há nas suas naturezas mortas
algo de espiritual, uma luz que resplandece. Uma simples cesta de frutos é uma
simples cesta de frutos, mas há nela uma tal irradiação que dá vida. É uma natureza
morta... que vive, que tem luz própria.
Outro Mestre que tem o condão de
nos fazer despertar para a alegria de vida é Matisse. Faço uma citação
(Matisse, Taschen):
"A Clara MacChesnay,
que se admirava, em 1913, que uma obra tão «anormal» tivesse como autor um
homem tão «vulgar e são», Matisse respondeu: «Oh! diga, de facto, aos
americanos que eu sou um homem normal; que sou um pai e um marido dedicado, que
tenho três bonitos filhos, que vou ao teatro, que pratico a equitação, que
tenho uma casa confortável, um belo jardim que adoro, que tenho flores, etc.,
exactamente como toda a gente» (...)
Não é impunemente que Matisse
sonha com uma «arte de equilíbrio, de pureza, de tranquilidade, sem motivo
inquietante ou preocupante, que seja, para qualquer trabalhador cerebral, para
o homem de negócios assim como para o artista das letras, por exemplo, um
lenitivo, um calmante cerebral, alguma coisa de parecido com uma poltrona em
que ele descanse das suas fadigas físicas"(...)
Matisse, insurge-se, por exemplo,
contra a afirmação de René Huyghe que lhe atribui «uma impassibilidade estranha
e requintada». «Como se pode fazer arte sem paixão?», responde ele. «Sem
paixão, não há arte. O artista domina-se, mais ou menos segundo os casos, mas é
a paixão que motiva a sua obra. A angústia? Ela não é hoje pior que foi para os
românticos. É preciso dominar tudo isto. É preciso ser-se calmo; e a arte não
deve inquietar nem perturbar - deve ser equilibrada, pura, repousante".
Há neste quadro de Seurat algo
que me interpela. Os tons de azul e verde, os pés refrescando-se na água do rio.
O rapaz, concentrado nos seus pensamentos - diria até absorto nos seus
pensamentos, está como que no lugar de charneira num mundo que roda a grande
velocidade. Os barcos à vela dão a nota de um mundo bucólico, mas ao fundo as
chaminés das fábricas, expelindo fumo, apontam a inexorabilidade do progresso.
E no meio de tudo, o rapaz, costas arqueadas, olhar que não se fixa em nada,
nessa paragem momentânea, está a pensar. Ele sabe que o mundo avança.
Na água, jovens brincam,
felizes.
Na relva adultos descansam.
Aquele jovem é uma verdadeira
charneira. Já não é criança, mas ainda não é adulto. Está na relva com os
adultos, mas os pés mergulham na água onde estão as crianças; está entre o
moderno e o novo. A sua cabeça toca o espaço das fábricas, mas o seus olhos
estão virados para o repouso das águas refrescantes.
Em que pensa ele?!
Ele é a personagem principal, mas
sem os outros à sua volta não seria possível perceber o quadro.
Tenho namorado este quadro para
uma parede de minha casa. Gosto de olhar para a imagem do quadro, dá-me alguma
paz: há nesta paragem momentânea esse balanço, equilibrado, mas muitíssimo,
muitíssimo frágil dos momentos em que nos entregamos aos nossos pensamentos e
que norteiam a nossa acção. Tudo neste quadro nos fala de resiliência. Há uma
linha muito ténue nele que nos fala de se tornar adulto ou voltar a ser
criança, entre a maturidade e a infantilidade, entre baixar os braços e
chapinhar na água ou se empregar na luta. Neste intervalo que é o quadro, há
verdade. Ainda só há pensamento. A decisão há-de vir!
O quadro é todo ele suspensão, e
há uma tensão muito ténue nele cuja resposta será dada pelo que o jovem
decidir. Tudo está ainda em aberto, mas por enquanto o jovem descansa com os
pés na frescura da água.
E, se fizermos o exercício de
pensar porque escolhemos os quadros e as fotografias que temos na nossa casa?
Há evidentemente um sentido
estético que procuramos – queremos que os objectos fiquem bem onde escolhi. Por
outro lado, gostamos que eles tenham a ver com o espaço. Na nossa casa temos
espaços mais sociais e espaços mais íntimos.
Da mesma forma que nas cidades
temos torres de Igreja onde a cruz se mostra e faz lembrar que Deus ai está,
apesar das nossas distrações, termos imagens com que nos cruzamos no dia-a-dia
relembra-nos o que é importante. São como que mnemónicas, auxiliares de
memória. "Art as Therapy" lembra-nos logo no início que essa é uma
das funções da Arte (Art as
Therapy, de Alain de Botton e John Armstrong, Phaidon, 2013)
Há aqui uma função eminentemente
pedagógica – o mesmo sucede nas imagens nas Igrejas que são catequéticas e que
num tempo de analfabetismo eram como que lições bíblicas.
Nos quadros de minha casa procuro
algo que seja inspirador, uma espécie quase de ideal de vida: no aperto de mão
do meu avô que estamos em relação com os outros e que é bom construirmos
relações.
Na delicadeza da conversa no
patamar das escadas nota-se uma cumplicidade na troca de olhares, um requinte
que acho que foi eternizado pelo fotógrafo. Há uma sintonia grande, simpática
nesse olhar.
Aquelas imagens de Bolonha
colocam-me nesse espaço das cidades italianas, não muito diferentes de Lisboa,
do legado da civilização greco-latina-cristã que é afinal também o nosso.
Uma praça, a ágora onde se passam
os negócios, a política da urbe e onde as pessoas se encontram para rezar.
Essas cidades que o tempo manteve, guardiões da nossa memória e dos nossos
valores colectivos. Elas são também mnemónicas de que não podemos deixar-nos
conduzir por demagogos e populismos, por déspotas iluminados ou pior - déspotas
não iluminados, mas que a força das cidades reside no diálogo.
Ou os quadrinhos que tenho no
quarto, que me lembram da amizade, da fé, de momentos felizes de viagens.
Como alguém dizia, nós somos as
nossas relações.
A delicadeza dum quadro dos dois
namorados em que ela dorme e ele a vigia discretamente pode ser de facto sinal
de que o amor entre duas pessoas fala-nos de respeito e de atenção ao outro, de
cuidado e de enlevo, de presença tranquila e de querer buscar o bem do
outro. Os Simon & Gurfunkel têm uma bonita música:
“I can hear the soft breathing of the
girl that I love,
As she lies here beside me asleep with the
night. Her hair in a fine mist floats on my pillow,
Reflecting the flow of the winter moonlight”.
A arte pode ajudar-nos a
desenvolver as capacidades que nos tornam melhores no amor, e que basicamente
são aquelas que nos tornam mais emocionalmente inteligentes: melhores ouvintes,
mais resilientes, a sabermos pôr as coisas em perspectiva, etc.
Texto para meditar
1. Escrevi este texto para
introduzir uma conversa com este título, na Livraria Arquivo de Leiria. É, por
isso, anterior à conversa e não o seu reflexo. É um atrevimento que só me
compromete a mim.
A palavra poder evoca realidades
muito contrastadas. Tanto pode designar uma pessoa cheia de saúde, capaz de
enfrentar os múltiplos desafios da vida quotidiana, como exprimir a debilidade
extrema: não poder falar, não poder andar, não poder ver, não poder ouvir, não
poder respirar, não poder trabalhar e sentir essas dolorosas ausências. Um
hospital mostra esse contraste entre as pessoas que cuidam e os doentes que a
elas recorrem porque reconhecem nelas o poder de conseguir remédio para superar
o mal que as atingiu.
Fala-se, noutro sentido, da
conquista do poder, seja ele económico, político ou religioso, por vias
democráticas, legítimas ou, então, do acesso a esses mundos através da
violência física e psicológica ou da astúcia fraudulenta. Quando é competente e
é conseguido por caminhos eticamente legítimos, acaba por se traduzir em formas
de serviço público. Quando segue as vias da fraude e da violência, não se
destina a servir e a libertar, mas a dominar. A dominação pode ser económica,
política, militar ou religiosa ou agregar todas essas formas, como acontece com
o poder totalitário.
2. Perguntam-me qual é o poder de
uma obra de arte. Não se confunde com nenhuma das formas já referidas. Não se
mede pelo seu alcance utilitário. Não serve para outra coisa melhor do que ela
própria. Não é catalogada nas obras de misericórdia, de beneficência ou da
maldade. Não copia a natureza, não a duplica nem a representa.
Diz-se que o poder da arte
resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as
evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível
mundo de experiências de fruição estética, pela densidade das emoções que
desperta.
Quando se insiste que essas obras
não copiam a natureza, não a duplicam, não a representam, procura-se destruir
as ilusões que as próprias reconfigurações das obras artísticas podem ocasionar
e que impedem o acesso à criação que as torna únicas, inconfundíveis.
A experiência da fruição estética
é uma participação no mundo da imaginação criadora do artista, imaginação
liberta e libertadora. Subversiva por ser o que é.
Numa entrevista a Ai Weiwei,
artista chinês, activista, dissidente, preso e exilado, foi-lhe perguntado: a
arte pode ser uma ameaça para o poder totalitário? “Acho que sim. Eles passam o
tempo todo a dizer às pessoas que são poderosos. No entanto, só são poderosos
porque utilizam a violência, recorrendo à força do Exército. É um poder feito
de armas. Não são poderosos de pensamento, não são poderosos de espírito. Não
são sequer capazes de nos olhar na cara ou ir a uma escola de arte. Não têm qualquer
capacidade argumentativa. Que poder podem ter? Quão poderosos podem ser? É por
isso que a arte é importante. Fala pelo e através do pensamento das pessoas e
não quer saber da violência para nada. A arte tem mais poder do que eles. A
arte mostra o poder do pensamento humano, o poder da nossa imaginação.” [1]
3. A arte questiona o mundo das
aparências e suscita obras que testemunham o poder da imaginação criadora,
provocando emoções de pura beleza. Onde havia apenas uma pedra de mármore,
Michelangelo extraiu a sua Pietà, que não estava na pedra, mas no poder da sua
imaginação transfiguradora, presente em todas as formas de arte, seja no campo
da música, da literatura, do teatro, da pintura, da escultura ou da
arquitectura.
Todas essas formas tiveram, ao
longo da história dos povos e das culturas, as expressões mais surpreendentes e
todas suscitam a mesma pergunta: o que há de especial nessas expressões que as
torna autênticas obras de arte e lhes dá um poder de sedução inconfundível?
Essa resposta deveria surgir
daquilo que se chama estética, mas esta lida com o enigma. Não existe uma
ciência objectiva para discernir o que é e o que não é uma obra de arte. Quando
é que o arranjo dos sons produz uma música sublime? Quando é que o arranjo das
palavras produz um poema, um romance, um conto aos quais se volta sempre?
Quando é que o arranjo das cores produz uma pintura que desloca multidões para
a contemplar? Quando é que o trabalho sobre a madeira ou a pedra produz uma
escultura? Quando é que a construção de um espaço constitui uma obra de
arquitectura?
Entre os muitos arranjos das
palavras, dos sons, das cores, dos trabalhos em madeira, pedra ou metal, uns
são considerados obras de arte impressionantes e outros são considerados
irrelevantes, banais, para não dizer pirosos ou foleiros. A divulgação da
mediocridade encadernada, pintada ou musicada, servida por alguns meios de
comunicação, tem o enorme poder de poluir o gosto, impossibilitando uma
autêntica experiência estética.
De matérias banais podem ser
feitas obras geniais e de matérias nobres podem sair produtos que só o mau
gosto pode consumir.
Sem evocar, aqui, os grandes
monumentos da Ásia, da Índia, das Américas, da Europa, podemos perguntar o que
seria, por exemplo, da Itália sem o poder das suas imensas obras de arte? Que
seria de Paris sem a catedral de Notre-Dame? Mais perto de nós, que seria de
Lisboa sem os Jerónimos, de Alcobaça sem o seu mosteiro, da Batalha sem o
Convento de Nossa Senhora da Vitória, de Tomar sem o Convento de Cristo?
Qual é o poder de todas essas
obras, para além do lucro económico que o turismo consegue? Não sei responder.
Verifico, apenas, que testemunham de uma beleza que, se os seus suportes
materiais pudessem, seria eterna. Os seus autores morrem, elas não. Toda a
grande obra de arte, a começar pela música, levanta sempre a questão da sua
humana e divina transcendência, sem a nomear. Provocam emoções que nenhum mundo
pode conter, porque são a reconfiguração de um mundo que excede todos os
mundos. A sua materialidade sugere o imaterial, porque a sua linguagem é sempre
metafórica, de múltiplas significações, inesgotáveis e resistentes a qualquer
comentário.
Deixo, para uma próxima
oportunidade, o comentário de uma obra apresentada, na passada quinta-feira
[2], que testemunha o poder que a arte moderna tem de evocar, na sua imanência,
a transcendência humana e divina.
Frei Bento Domingues, in PÚBLICO 20.10.2019
[1] Por Alexandra Carita, Revista
do Expresso, 12 de Outubro, 2019, pp.34-40
[2] João Alves da Cunha e João
Luís Marques (Coord.), Dominicanos. Arte e arquitectura portuguesa. Diálogos
com a Modernidade, Edição
Comentários