O Mar, a nossa última fronteira

Um dos romances mais divertidos de Jorge Amado chama-se "Os Velhos Marinheiros". Li-o há muitos anos, não me lembro de tudo, mas ficou-me o traço duma fina ironia, um humor queroziano: uns velhos que se sentavam na praça de um pequeno vilarejo da Baía, no nordeste brasileiro, ouvindo histórias dum tal Vasco Muscoso de Aragão, que se auto-intitulava "capitão-de-longo-curso", contando aventuras em alto mar, que teriam o próprio por protagonista, sendo recebidas pelos demais com uma boa dose de cepticismo...

Um dos meus amigos de juventude, de quem recordo boas aventuras percorrendo a costa portuguesa, é o Nuno Corrêa de Sá. Estudou Direito como eu, mas já adivinhava nele outros voos, ou melhor, "outros mergulhos"... sempre gostou imenso da natureza, cresceu no Canadá no seio duma família que sempre terá gostado do ar-livre e, em adolescente, chegou a Portugal, tendo-o eu conhecido estaríamos ambos a entrar para a Faculdade. A Maria Anjos, sua namorada na altura e hoje sua mulher, era uma velejadora internacional e havia tradição de mar na sua família. Hoje, o Nuno é um muito bem-sucedido profissional ligado ao mar, assinando o seu nome como "Nuno Sá". As suas fotografias de vida marinha nos Açores demonstram a riqueza do nosso mar, da vida selvagem, além de terem um valor artístico extraordinário. O Nuno é um premiado fotógrafo e agora realiza documentários para a televisão: o documentário "Mar, a última fronteira" passou em 2020 na televisão  e é um fascinante percorrer da riqueza dos nossos mares (a propósito, boa escolha o título, pois o mar ainda é uma "fronteira").

Este texto, a propósito do mar - e sobre o que fazermos com ele; o mar que é apontado no estudo de Costa e Silva sobre o futuro da nossa economia como um importantíssimo eixo estratégico de desenvolvimento do nosso país. Neste momento representa 5% do nosso PIB, mas pode crescer muito.

Em 2005, já também o Prof. Ernâni Lopes dizia que este seria uma das 5 apostas que Portugal deveria fazer - a única aliás que ligava Portugal à sua identidade. E, entretanto, passaram 15 anos desde que apresentou as suas ideias e, na verdade, as outras apostas foram feitas (a saber: 1) turismo; 2) atracção de valor acrescentado para Portugal, nomeadamente trazendo pessoas para viverem no nosso país; 3) economia das cidades; e 4) economia do ambiente). Mas não AINDA uma verdadeira aposta no mar, que seria a 5.ª aposta.

Ao escrever "Os Velhos Marinheiros", Jorge Amado retrata bem a distância que vai do sonho (ou delírio... como queiramos) à realização. O nosso passado, também já lá vai e hoje o que devemos perguntar é: que futuros podemos construir com o mar que temos?

Portugal "perdeu a mão a mão" dos mares sobretudo quando se deu a Revolução Industrial. Antes fora vítima dos ataques de outras potências europeias como a Holanda, que devido à união dinástica com Espanha, fizeram com que nós também fossemos alvos a abater. Mas quando se deu a Revolução Industrial, Inglaterra passou a dominar por completo os mares e tornou-se a grande potência marítima, e nós inexoravelmente fomos relegados para a 3.ª divisão. O conhecimento técnico é algo absolutamente essencial.

Duarte Pacheco Pereira dizia no Renascimento que a "experiência é a madre de todas as cosas" - e é bem verdade. Diz-se que para uma pessoa se tornar competente em determinada área precisa de empregar um esforço de 10.000 horas, o que corresponderá a 4 anos de trabalho e 8 horas por dia. Assim será também com os povos: quando perdem o contacto e a experiência “descapitalizam-se”. Desabituámo-nos do mar.

A Conferência de Berlim impôs a política da ocupação efectiva dos territórios em África e foi só a partir dessa altura que tentámos recuperar algum do tempo perdido. 

A primeira empresa terá sido a Companhia Insulana de Navegação, criada em 1871 uns anos antes aliás dessa Conferência de Berlim. Nasceu pela família Bensaúde e ligava os Açores a Portugal Continental. Uns 10 anos depois, os mesmos Bensaúdes, ligados a outros empresários, entre os quais o meu trisavô Adolfo de Lima Mayer, criam a Companhia Nacional de Navegação, para a ligação com a África portuguesa (em minha casa tenho com muito orgulho uma linda maquete em madeira do barco “Zaire”, mandada fazer em estaleiros do sul de Inglaterra, deste que foi um dos navios que fazia o tráfego de mercadorias e passageiros para a África portuguesa pela Companhia Nacional de Navegação, e em que no seu livro “Equador”, Miguel Sousa Tavares coloca Luís Bernardo a viajar para Angola).   

Antes de ser Presidente da República, o Almirante Américo Tomás ganhou muito prestígio no Estado Novo por ter feito uma reforma no sector da marinha mercante, tentando fundir as empresas para que elas pudessem ganhar alguma escala a nível internacional. No entanto, com a descolonização, toda esta frota deixa de fazer sentido.

Portugal só poderá novamente virar-se para o mar se pensar estrategicamente no seu potencial. E hoje devemos apostar sempre com consideração pelas questões ambientais.

Nos últimos 20/30 anos, Portugal tornou-se dos países mais bem classificados em termos de surf a nível mundial e temos muito apaixonados pelo mar, mas talvez e, ainda, sobretudo do mar costeiro. Com a prática do surf, é importante conhecer determinados aspectos como a meteorologia, que têm que ver com fenómenos atmosféricos, que condicionam o estado do mar e das ondas como as altas e baixas pressões, ciclos das marés, etc. Há um assim um know-how que se associa a esta prática desportiva, um campo de saber que poderá ser útil se pensarmos numa dimensão mais ampla.

A Inês Rodrigues é uma amiga minha que tem uma escola de surf há muitos anos, que dá aulas e clinicas de surf a portugueses e estrangeiros. Ganha parte da sua vida com esta actividade e é um caso de sucesso também.

O nosso mar atrai muitos estrangeiros e a aposta duma Universidade Nova em abrir um campus junto a Carcavelos não é certamente por acaso. Inscreve-se justamente nesse potencial de atracção que o nosso mar tem, uma espécie de Califórnia, onde os estudantes estudam e relaxam enquanto praticam desportos náuticos.

Tendo uma costa bastante extensa e águas territoriais tão-amplas, custa porém ver o quão pouco investimos ainda no mar, não estamos muito habituados a “sair de pé”, em ir para o mar alto. 

E basta pensar antes de mais na actividade náutica de recreio: há uns anos, na Bretanha, em França, fiquei admirado com a prática de recreio que existe por lá. Não se diga que o mar deles é melhor que o nosso, porque não é certamente. É claro que isto cria uma ligação ao mar, tal como a Maria do meu amigo Nuno tem desde a infância e que passou para ele, criando um projecto de vida.

Seria interessante, aliás, comparar a actividade de recreio de países como França ou Holanda, ou mesmo a Espanha, e ver o que eles fazem e de alguma maneira tirar algumas boas lições porque, voltando a Duarte Pacheco Pereira, só se nos habituarmos à dimensão do mar é que podemos fazer dele alguma coisa. Não há dúvida que em Portugal existe alguma actividade de recreio, mas será que é um desporto democratizado, ou ainda um desporto muito de elite?

Não foi de um dia para o outro que os portugueses descobriram o mar na sua história: aliás desde o início da sua nacionalidade, há uma actividade mercantil importante com o Norte da Europa e com o Mediterrâneo. A atestar a importância dessa actividade, existem p.e. estaleiros navais na foz dos grandes rios. No séc. XII à época de D. Dinis criam-se bolsas de seguros, o que vai permitir que a actividade mercantil se intensifique mais ainda. Essa ligação com o mar constituiu um hábito e desse hábito surgem oportunidades. Costuma-se dizer que “longe de vista, longe do coração”, esquecemo-nos de que existe algo que não exergamos no nosso olhar. E se calhar, há espaço no nosso olhar para que possamos abarcar o mar.

Pensemos em algumas áreas.

A nossa frota pesqueira é hoje muito diminuta. Será que é porque as quotas pesqueiras são tão baixas? Há quem diga que temos com a Galiza do melhor peixe do mundo. O que poderia ser feito, para, no respeito pelo ambiente e pela preservação da vida marinha, pudéssemos ter uma frota melhor? Há quem diga que a resposta está uma vez mais em aliar a preocupação pelo ambiente com a tecnologia.

A pesca de arrastão tem efeitos nocivos para os ecossistemas marinhos, mas, se associarmos a pesca com a tecnológica, será mais fácil identificar os cardumes e fazer uma pesca de maior precisão. Que lições podemos retirar da adesão à CEE no que diz respeito ao sector pesqueiro e que politica temos para este sector que era tão relevante em termos sociais?

Um dos sectores para que a União Europeia tem chamada mais a atenção é o da aquacultura sustentável, que está dissociado do aumento das emissões de CO2. Numa interessante entrevista https://www.cgd.pt/Site/Saldo-Positivo/negocios/Pages/economia-do-mar-entrevista.aspx   Rúben Eiras, Director Geral da Política do Mar defende a criação de modelos de aquacultura multitrófica em alto mar, através da recriação do que acontece no meio natural. Defende ele: “deve apostar-se em criar produtos de alta qualidade, em que não é preciso gerar tanta produção em massa, para ter lucro. A título de exemplo explica que enquanto uma dourada, ou um robalo se vende a 5 euros no mercado, 1 lírio de 2,5 kg é vendido a 60 euros no mercado. E o lírio é um pescado que existe no nosso mar e que se presta à aquacultura. Portanto, 1 lírio neste momento vale mais do que 2 barris de petróleo”. 

Os nossos portos são formas de escoar a nossa produção agrícola e industrial e são um elemento importante na nossa economia. O que devemos fazer para que a ligação dos portos seja efectivamente um sucesso? O que pode melhorar? Terão os portos as dimensões necessárias? Existem trabalhos que deveriam ser feitos para os melhorar? Por exemplo, há cerca de 2 anos colocou-se a questão da necessidade de realizar dragagens no rio Sado para melhorar as condições do porto de Setúbal e colocaram-se questões ambientais. Como ficaram as coisas entretanto?

Os terminais de cruzeiros que se criaram em Lisboa e Leixões, o que podemos dizer sobre os mesmos?

Como colocar o Porto de Lisboa, Sines e Leixões no mapa? Naturalmente que não podemos ambicionar ter a importância dum porto de Roterdão, ou de Hamburgo, mas será que à escala ibérica não poderiam os nossos portos ter maior protagonismo? Não nos esqueçamos que 80% do comércio mundial é feito por via marítima, não poderíamos ter aqui um peso maior? Não poderiam os nossos portos ser um entreposto seguro de reabastecimento nas rotas atlânticas? Ou mesmo nas rotas mediterrânicas, na sua ligação atlântica?

Outros exemplos que podemos dar são o moliço, mistura de sargaço com macro-algas que desde tempos imemoriais se faz em Aveiro e que é um fertilizante natural. Uma empresa desta cidade produz com grande sucesso macro-algas que podem ser cultivadas como uma alface e que têm uma grande vantagem: absorvem imenso CO2 e têm múltiplas aplicações, ou seja, podem ser processadas para fazer farinhas, óleos, alimento para peixes ou podem servir para alimentação humana; ou a extracção de minerais raros em que o nosso mar é rico e que são fundamentais para desenvolver tecnologias de energias renováveis e, se feita de forma sustentável, constitui uma oportunidade importante.

Penso interessante a ideia de criar uma Universidade do Mar, que pense a sua economia, uma das ideias avançadas por Costa Silva no seu estudo. Para formar pessoas, na perspectiva das potencialidades que o mar encerra. Para nos voltarmos a habituar à ideia do mar novamente. Recordemo-nos da nosso rei D. Carlos, que quis de facto estudar do ponto de vista científico os oceanos. 

Será que sabíamos que, nesta era das energias renováveis, Portugal prevê investir em plataformas eólicas em off-shore, criando o maior parque flutuante do mundo que irá operar ao largo de Viana do Castelo?

Estamos também a pensar em como aproveitar a energia das ondas e das marés. Isto deve ser feito pelas nossas universidades e em cooperação com outros países.

Como diz também o citado Rúben Eiras, homenageado pela Noruega pelo aprofundamento da cooperação empresarial, científica e tecnológica na área da economia azul entre Portugal e Noruega: “É uma honra receber este reconhecimento por parte de um país estratégico e histórico nas relações marítimas com Portugal. As ZEE (Zonas Económicas Exclusivas) de Portugal e da Noruega representam 50% do Atlântico europeu. Há muito potencial por explorar e concretizar para os dois países prosperarem em conjunto na economia do mar sustentável”.

Creio que Portugal e a Noruega poderão continuar esta velha ligação, que deu à mesa portuguesa o bacalhau, esse peixe cozinhado de 100 maneiras!


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