O Inferno
Esta semana vi um magnífico filme chamado "Pleasentville - Viagem ao Passado"(https://www.youtube.com/watch?v=dSDm62Hmbf4). Conta a história de 2 irmãos gémeos (rapaz e rapariga) que dos anos 2000 são transportados para o passado, através dum fenómeno tecnológico que os introduz numa série a preto-e-branco dos anos 50. Duma vida colorida e cheia de nuances, os dois irmãos chegam a um mundo previsível, onde as regras estão bem definidas. São os "Boring 50's", o mundo dos baby-boomers - tudo a preto e branco, realidade feita de clivagens muito grandes entre o "certo e o errado", o que torna tudo mais fácil de conhecer, mas onde temos que nos conformar com regras exteriores a nós, onde nem sempre nos conseguimos encaixar.
É um filme de uma enorme criatividade, com recursos técnicos excelentes pois, com a introdução do jovem casal de gémeos que vão abalar essa realidade dual e simplista, algumas das personagens vão ganhar cor e rebelar-se, enquanto outras, defensoras acérrimas da ordem, organizam uma contra-ofensiva...
Qual dos dois mundos é o melhor? Os nossos confusos anos 2000 ou os organizados e compostos anos 50? Dou assim o salto para aquela leitura que comecei esta semana a fazer da "Divina Comédia" de Dante.
Começa com o Inferno e percorremos com Virgílio, a viagem de Dante pelos 9 círculos do Inferno.
O texto que introduz a viagem é muito bonito:
No meio do caminho da nossa vida
Encontrei-me numa selva escura,
Porque me tinha extraviado da via do bem".
Nas minhas manhãs contemplativas, tentei adentrar-me um pouco nesta "selva" e percorrer o Inferno, tal qual narrado por Dante de Alighieri.
Mais do que a dor execrável das pessoas que aí jazem, acaba por ser uma espécie de levantamento dos pecados que levam à danação, como a luxúria, a gula, a ganância ou a prodigalidade.
Acabei por não achar
assim tão interessante a leitura, porque a visão que temos do Inferno é
vivida como uma viagem exterior, não tanto experimentada como
lugar onde se pena e acontecem os sofrimentos e os mais diversos padecimentos, o lugar do
choro e dos rangeres de dentes. Apresentam-se-nos os ocupantes do Inferno, alguns com rosto e nome, gentes do poder e detentores de cargos civis ou religiosos. Mas à semelhança do que se passa com Gil Vicente, que escreveu bastante depois, é uma narrativa que não vai ao fundo das paixões humanas e apresenta-se como algo sarcástico e com algo de crítica social (não é tanto um tratado sobre a natureza humana, ou um tratado teológico).
Inferno
etimologicamente terá algo que ver com o lugar donde se não tem
regresso e a leitura deste livro pretendia ser uma espécie de roteiro por
aquilo que são os sofrimentos que não acabam, um beco sem saída. No Canto Terceiro diz-se "Por
mim entra-se na cidade dolente, por mim entra-se na dor infinita, por
mim entra-se na estância perdida (...) Antes de mim não foram criadas
senão coisas eternas, e eu eternamente duro. Deixai toda a esperança. A
vós que entrais!"
É curioso que o guia desta viagem é um poeta, Virgílio. A arte obriga a um confronto nosso com os nossos demónios interiores, há sempre uma luta que nos obriga a confrontar-nos. Um poeta, um escritor tem que conhecer bem o coração humano, com as suas partes luminosas e os seus vales tenebrosos.
Também sobre a luta do bem e do mal, esta última semana vi um filme que gostei bastante, das Crónicas de Nárnia de C.S. Lewis, "A Viagem do Caminheiro da Alvorada" (https://www.youtube.com/watch?v=Ig_8d0e32tg).
Aprecio muito esta fábula, onde Aslan aparece sob as vestes de leão, na sua voz serena e lúcida. Deus é a serenidade e lucidez (tem que ver com luz). Em C.S. Lewis a coragem é alçada a virtude primeira, aquela que viabiliza as outras. Os jovens estão apostados na batalha do bem contra o mal, mas todos eles combatem os seus "diabinhos" interiores, o que permite potenciar a já de si rica imaginação do autor ao criar um mundo à parte. Neste sentido, é uma história contemporânea, apesar dos dragões e das gárgulas à imagem do mundo medieval de Dante.
Assim podemos estabelecer o paralelo da "Viagem do Caminheiro da Alvorada" com os tempos modernos do tempo de "Pleasentville" e da "Divida Comédia" com o mundo mais a preto e branco dos anos 50...
A Divina Comédia dá-nos o fundo da história e foi seminal no traçar das grandes coordenadas mentais do Mundo Ocidental. Por isso a sua riqueza. E quero ver como o Pe. Mário Garcia nos convidará a rezar a partir dela (proposta que os Jesuítas farão no início de Junho no Rodízio).
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