Em Bordéus, sem cotoveladas

Qualquer visita a uma capital europeia é hoje um exercício difícil de pontaria, pois exige do viajante poderes divinatórios e precisão matemática para evitar multidões:

- Qual a melhor hora para ir a tal sítio?

- Que tal comprarmos com antecedência bilhetes para este ou aquele museu?!

Recentemente fui a Madrid e só se vence a multidão da Gran Via a modos de cotovelada, tal qual jogo de rugby... É assim em Roma, em Amsterdão ou Londres... o melhor é optarmos por outras cidades que não capitais. 

Vim a Bordéus e aqui vive-se uma Paris civilizada, sem multidões, com tempo para se estar à-vontade e poder-se assistir tranquilo ao jogo de rugby na televisão, com um bom entrecôte e vinho tinto (o que, em dia de anos, foi para mim alegria imensa, por ver Portugal a ganhar de forma extraordinária às Ilhas Fiji num jogo em Toulouse!)

Não por acaso chamam-lhe (a Bordéus) a "Petite Paris". Aqui encontro os edifícios haussmanianos, as praças bonitas e cheias de luz, com esplanadas para se estar. Há boas livrarias, a cidade é plana. Uma “Paris” sem cotoveladas.

Bordéus, cidade de Montaigne e Montesquieu, dois pais da civilização ocidental, dois homens de espírito. O primeiro, humanista que foi Maire de Bordéus e que se fechou numa torre para escrever os seus "Essays"; o segundo, reiventor da democracia, também exerceu funções públicas, mas mais conhecido por ser o homem da separação dos poderes no seu célebre estudo "O Espírito das Leis".

Hoje, numa das minhas voltas encontrei uma placa alusiva a um homem dos mais corajosos que tivemos no séc. XX (um "Profile in Courage" seguindo um célebre livro de JFK): Aristides de Sousa Mendes. Reza a placa: "Juste parmi les Nations. Il a sauvé 30 000 réfugiés dont 10 000 juifs menacés par l'avance des troupes nazies en leur délivrant des visas d'entrée au Portugal. Désobéissant aux ordres de son Gouvernemernt, il écouta la voix de sa conscience en détriment de sa carriére et de sa famille. Pour cet acte héroique, il a été condamné par Salazar en octobre 1940. Qui sauve une vie sauve l'humanité".  

Amanhã saio desta cidade encantado e com vontade de aqui voltar e ir visitar as vinhas, ir a Saint Emillion, etc, indo no caminho a ler um pouco de Montaigne ou de Montesquieu (li umas frases dele bonitas: “Je m’éveille le matin avec une joie secrète de voir la lumière ; je vois la lumière avec une espèce de ravissement ; et tout le reste du jour je suis contente”), ou quem sabe de Mendes, de Sousa Mendes?! Dizem que Bordéus é a terra dos 3 M's: Montaigne, Montesquieu e Mauriac. Ora como não conheço este último "M" (mea culpa), substituo-o pelo Mendes, o nosso ilustre de Sousa Mendes.

E viva Portugal que aqui em França, no rugby, fez furor. No dia dos meus anos, assisti ao jogo num pequeno pub (também os há por aqui) e as cotoveladas houve lá no jogo - e certamente muitas nas ruas de Paris, entre os milhares de transeuntes do Quartier Latin! Ser turista hoje é uma arte a praticar com saber, para evitar cotoveladas! E eu gosto mais de ver rugby na televisão.

Amanhã de manhã poderei dizer com Montesquieu: “Je m’éveille le matin avec une joie secrète de voir la lumière ; je vois la lumière avec une espèce de ravissement ; et tout le reste du jour je suis contente”. Dou-me novamente conta que há qualquer coisa que me faz gostar de França, do gosto francês.





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