Crónica do tempo que passa... mais uma
Se algo atrapalha hoje é a total falta de crença no ser humano e a inconsequência dos seus actos.
Vivemos tempos de incredulidade, de cepticismo que é palavra mais forte, que rotula tudo como indiferente do ponto de vista ético. António Pinto Leite no seu livro "Onde está o Mal", feito da selecção de crónicas que escrevia no Expresso, dá conta disso mesmo.
Estando a ler biografia moral de Abraham Licoln (qualquer coisa como "Moral Virtues of Lincoln"), um excelente estudo sobre como este homem cresce moralmente, o autor aponta algo interessante sobre a crença que então vivia a sociedade americana: ainda Nietzsche, Marx e Freud não tinham lançado os seus ataques à moral, ainda se vivia numa base de crença no ser humano e de destrinça entre o Bem e o Mal.
Mas além deste aspecto - do ataque à base moral da sociedade - não podemos escamotear o facto de se ter verificado a globalização e a industrialização, que fizeram ruir a sociedade autárquica - ou melhor, as comunidades.
Aquilo a que custa assistir hoje é a incapacidade do homem, a sua impotência para mudar o rumo aos acontecimentos.
De todas os "layers" de que se compõe o ser humano, certamente Nietzsche, Marx e Freud terão uma parte de razão, o problema foi absolutizar as suas posições.
Num artigo que na véspera de Natal Jorge Almeida Fernandes assina no Público, intitulado "a 1.ª civilização ateia", o jornalista fala de Vaclav Havel e de uma palestra que deu na Universidade de Standford (a lembrar uma outra palestra, não me recordo se à mesma universidade do escritor russo Alexander Solzhenitsyn sobre o fim da coragem na civilização ocidental). Nessa palestra, um dos temas é o da pressa, o viver-se a curto prazo, a lógica do curto prazo, do lucro rápido.
Se algo atrapalha ainda é a difícil capacidade do homem aprender: os erros históricos repetem-se. Porque os erros se cometem por homens e mulheres, de carne e osso, neste intricado devir em que se concretizam as vidas concretas de cada um e a Humanidade renova-se a cada segundo com cada novo ser a nascer. Por isso, bem aprendeu Lincoln a lição através de Shakespeare que sabia bem ler na alma dos seres humanos toda a sua complexidade. Aprendeu também nas fábulas de Ésopo e na Bíblia.
Lincoln era um homem que se moldou a si, nas circunstãncias da vida, difícil. Mas era político porque desenvolveu uma sabedoria prática, talvez como nenhum homem político ainda atingiu, feito da graça campestre que ele tinha, tal qual poeta popular com vontade de ferro, um Jesus falando aos sacerdotes do Templo.
E se hoje vivemos tempos de cepticismo, talvez mesmo só a a graça desarmante de um Lincoln. E se hoje vivemos assim, só mesmo o humor cortante de pessoas assim, ou daquela graça prosaica dos britânicos. E se hoje vivemos tempos assim, só mesmo o "wit" e o espírito de alguém que consiga "arrumar" os demagogos. Será possível em democracia? Talvez não. Mas um Lincoln conseguiria. O retrato mais próximo que encontro aqui, na nossa terra, é o de Bagão Félix. Sim, porque Bagão sabe ler nos sinais dos tempos as suas linhas de força, sabe desmontar a realidade nos seus jogos de força e, em sínteses engraçadas e em palavras não destítuidas de inteligente remoque, devolver-nos o jogo para que possamos pensar o Futuro que queremos. Ele seria um desses homens. Se ele fosse a votos para Presidente da República - continuo com esperança que o faça um dia... - que percentagem juntaria? Ele seria o Presidente de todos os portugueses, mas sem deixar de ser o homem que vê mais longe e mais fundo, com a graça que tem.
Mas à parte tudo isto, há que trabalhar. Enfim. Mais trabalho e menos conversa que é o que todos nós devíamos fazer seriamente em vez de andarmos a tentar ser mais espertos do que os outros e que se calhar deu em muitas crises do capitalismo, como esta em que estamos. A esperteza e o "greed", a ganância. Porque como diz Gandhi e bem recorda Bagão - lá está mais uma vez Bagão... - um dos 7 pecados sociais é riqueza sem trabalho.
E se há coisa a fazer é também vincar que as acções não são inconsequentes, que não são indiferentes. Penso que é hoje cultura dominante este espírito.
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