Enquanto na Europa são números, na América Latina é a palavra!

Neste tempo de desesperança em que a Europa está mergulhada, assisti ontem com pasmo – imagine-se! … - ao encontro promovido pela Venezuela em Caracas que juntou 32 Estados Latino-Americanos na conferência do CELAC, Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, que acaba de ser constituída. Numa enormíssima mesa, debaixo do olhar de Bolívar e de outros libertadores, cada chefe de Estado apresentou o seu discurso, sem peias e sem tecnocratismos. Televisionado para todo o mundo, pudemos ver substância, verdadeira política e valerá a pena acompanhar os seus desenvolvimentos – à parte aqui as dúvidas legítimas que tenhamos sobre muitas das personagens envolvidas. Mas o que fica desta conferência é a discussão de ideias, os antípodas do que podemos ver na Europa, em que tudo é apresentado de uma forma opaca, asséptica e desinteressante - discutido no silêncio de reuniões e em corredores de tanto pessoal certamente preparadíssimo, mas em que a nota dominante da análise a fazer é que o divórcio com o povo é gritante e ameaça um projecto colectivo que foi uma vitória da civilização frente à barbárie. É o método mais do que tudo que nos afasta deste projecto e que, infelizmente, não foi produto do acaso, mas opção deliberada que se institucionalizou desde há muito.
Nesta conferência dos países latino-americanos e caribenhos vemos ali o índio boliviano Morales, no seu primitivismo de ideias, em discurso improvisado; vemos o Presidente do Uruguai a arrancar reflexões profundas, metendo o dedo na ferida do porquê de tanto passado insuficiente para territórios de riqueza natural e apostado em ver na inteligência e na educação uma aposta num futuro melhor – um verdadeiro discurso dum político; a articulação dum excelso Presidente do Chile (Pinera) falar, sem constrangimentos e com inteligência e visão dos mitos do passado e da oportunidade de ouro que a América do Sul tem que agarrar; o Presidente da Colômbia falar, preocupado com as guerrilhas das FARP,  desse problema que dura já há 50 anos e que é uma chaga para todo o povo, centrando a resolução do problema na atitude de boa vontade que é requisito para se “sentarem à mesa”…
Apesar dum premeditado discurso anti-americano do anfitrião e de outros mais, cada um apresentou as suas ideias e aquilo foi política.
Já alguma vez vimos os nossos políticos europeus falarem assim em público?! Discutirem os problemas que os preocupam?! Não, vemos simplesmente planos de salas impecáveis, todos engravatados e, se alguma coisa nos apresentam, nada disso é inteligível para o comum dos mortais. E depois aquelas célebres fotografias de conjunto com eles todos muito sorridentes e com muitas pancadinhas nas costas.
A Europa, uma civilização que atingiu o máximo expoente de desenvolvimento humano, a terra da ciência e das artes, vive hoje fechada e anquilosada, discutindo apenas números e relatórios parcelares. Já não há discurso articulado, de conjunto, um discurso apostado em que ela seja a terra em que queremos viver e ter os nossos projectos.
E contudo a Europa é precisa. A Europa podia e devia ser uma comunidade de civilização, de crença no Homem, o último reduto da dignificação do Homem. Mas para isso é necessário que ela se construa a pensar nos cidadãos e que se lance um debate aberto e franco que mostre as incertezas, os problemas, as preocupações, as tenções, os projectos. A verdadeira política afinal.

Comentários

Anonymous disse…
A democracia é, logo à nascença, um moribundo. Já o dizia certo Senhor inglês, atrevo-me eu hoje a repetir. Mas é com o moribundo, os seus achaques, as suas idiossincrasias, as suas insuficiências, as suas injustiças, que temos de lidar. Até com o seu fim, presenciado pelo feto ancião esfaimado da tecnocracia, essa filha e mãe, ao mesmo tempo, da democracia. O Povo, soberano, não suspeita deste intrincado incestuoso e contra-natura de ideias, só conhece a demagogia, essa outra filha, muito operativa, e sempre colaborante, com mãe e filha, e perfeitamente amoral ou imoral, perversa e licenciosa.
Pensemos a política então, mas orfã e filha única, sede e trono duma consciência civilizacional e orgânica, individual, por dela se fazer o que todos queremos, e não nos é dado.
Anonymous disse…
assino o texto acima, JMR.

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