Esta enorme curiosidade que faz atravessar o rio

Dizia de si próprio George Steiner que em novo fazia listas de coisas que queria saber.

Também Edgar Morin, em entrevista recente a uma jornalista portuguesa dizia que o que o mantém vivo (já passou os 90 anos) é uma enorme curiosidade e que, por causa dela, interessa-se por tudo, até pelo futebol... É capaz até de ensaiar que o futebol tem que ver com o pensamento complexo, veja-se o que ele diz:

“Parece estranho, mas é o que discretamente propõe o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, autor de mais de 30 livros, no texto Epistemologia da Complexidade, publicado em Paradigmas, cultura e subjectividade (1996).

Explica-se: visto em simplicidade, o futebol é só um jogo em que cada equipa procura marcar golos ao adversário; visto em complexidade, torna-se uma partida de estratégias, em cada equipa constrói um jogo para desconstruir o jogo adversário.

“O futebol que vemos todas as semanas nos estádios é uma demonstração de complexidade”, escreve Morin, acrescentando que “com nossos olhos somos capazes de ver de maneira complexa, mas não somos capazes de pensar de maneira complexa”.

Para o autor, o pensamento complexo não é o pensamento omnisciente; pelo contrário, é o pensamento que sabe que é local, situado num tempo e num momento. O pensamento complexo, diz, não é o pensamento completo; pelo contrário, sabe de antemão que sempre há incerteza.

Em crítica ao que classifica como “dogmatismo arrogante que reina nos pensamentos não-complexos”, o pensador francês entende que “devemos aprender a viver com a incerteza e não, como nos quiseram ensinar há milénios, a fazer qualquer coisa para evitar a incerteza”.

(https://jefersonbertolini.wordpress.com/2014/07/08/o-futebol-e-a-teoria-da-complexidade/)

Uma das formas mais eficientes de se ver com objectividade a complexidade, uma vez que como nos diz Ortega y Gasset nós somos a nossa circunstância, é a de nos desinstalarmos, isto é, o de tentarmos ver com a partir dos "óculos" dos outros.

Precisamos de viver a experiência do outro para percebermos como o outro é; fechar-nos na nossa cápsula significa que apenas vemos uma parte da realidade, a realidade do nosso ponto de vista. Esta posição reconduz-se ao pensamento de casta, do "nós" por confronto com o "eles", os "outros".

A realidade da democracia pede-nos uma verdadeira ontologia da empatia porque nela confluem tanto a diversidade das circunstâncias como a diversidade das representações da realidade, mesmo daquelas que são obtusas por natureza, sejam elas de direita ou de esquerda.

A defesa de Trump é certamente uma forma obtusa de ser de direita, como será uma forma obtusa de ser de esquerda o ataque às estátuas.

Neste grande caldo em que as nossas sociedades se transformaram, o medo está sempre à espreita, levando-nos a refugiar-nos nos nossos referenciais de identidade de classe. És a favor do 25 de Abril ou contra? Defendes ou não os Descobrimentos? Não falarás então na Escravatura?!

A história escreve-se ou não pelos vencedores? É possível escrever a história, ou é tudo afinal muito subjectivo?

Eu sou daqueles que defende que houve erros históricos e que a história é possível de se narrar - que há a verdade. Não são apenas pontos de vista discutíveis, eu acredito no saber, na autoridade do saber e da verdade. Mas a história está sempre a reescrever-se, a integrar novas perspectivas (recentemente por ex. recebi um ensaio muito interessante sobre o tempo de D. João II e D. Manuel, sobre a Bíblia dos Jerónimos e que em certo sentido reescreve a história dando muito mais relevo a este último rei). Também as nossas vidas particulares estão sempre a rescrever-se: estamos sempre a dar novos sentidos à nossa história.

Interessantes os tempos em que vivemos. Há uns anos António Barreto, num 10 de Junho, dizia que precisamos novamente de profetas.


Esta última semana morreu um deles, Gonçalo Ribeiro Telles. Era um homem que unia mais que separava, que soube agregar homens tanto da direita como da esquerda. É sinal dos grandes homens que eles sabem fazer pontes, muito mais do que criar clivagens.

E hoje, vivemos assim, num tempo que deixou de ser morno. A direita parece que está a querer surgir, um tanto ou quanto atacada pela esquerda que a acusa de fascista. A mim, o que não tenho a certeza é que homens como André Ventura não se tratem mais de justiceiros (desta feita de direita), tipo Marinho Pinto, do que de verdadeiras novas esperanças (que aliem à postura interessada no futuro, a sabedoria construída pela reflexão no passado).

Tenho pena que a política não se faça mais com homens que conheçam a nossa história e que saibam nela identificar forças e traços perenes, indo aí buscar a referências para um projecto que venha de dentro, do conhecimento experimentado e procurado. Saber e Amor estão ligados, intrincados um no outro. Amo tanto mais o que conheço e conheço tanto melhor o que amo. 

Um bom ensinamento: “quando quiseres conhecer uma pessoa, não perguntes o que ela pensa, pergunta antes o que ama” (Santo Agostinho); esta perspectiva abre muito mais e é pena que muitas vezes estejamos tão tolhidos por aquilo que achamos que pensamos, que não demos espaço para conhecer verdadeiramente o outro.

Esse espaço de abertura é importante. Porque no limite, como dizia Kennedy aos soviéticos, habitamos a mesma terra e queremos que os nossos filhos nela habitem e frutifiquem.

São mais as coisas que nos unem do que aquelas que nos separam e afinal de contas, tudo acaba por passar.

Por isso, vale a pena passar o rio e ir ver a outra margem. Não fiquemos apenas pelo conhecido, pelas sombras da caverna. Pela nossa verdade. Tentemos ir ao outro lado. Foi isso que fez um Lincoln quando pegou na sua jangada e foi até New Orleans e aí viu mercados de escravos.

Acreditemos que há uma história colectiva - a da Humanidade, a do nosso País, da nossa cidade e a da nossa família e daquilo que podemos fazer, independentemente das divisões, das classes e dos partidos. Essa dimensão é a dimensão afectiva, a dimensão da relação. Da curiosidade pelo outro, pelo diferente. Até na nossa família encontramos o diferente no rosto dum irmão.


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