A araucária de Monserrate - a diversidade das origens e o olhar agregador
Costumava brincar quando era novo nos
Jardins de Monserrate, que ficam perto da nossa casa. Lembro-me certo dia
(quando o Parque estava como que abandonado) de com os meus primos termos
entrado à socapa e escorregarmos com caixas de cartão pelo grande relvado, tal
como descendo uma pista de ski, em tobogan. No fim do relvado havia (e há) uma
grande araucária, que majestosa, reina sobre toda diversidade do parque.
A tendência que o ser humano tem é a de
desconfiar do que é diferente de si: o que nós é igual dá-nos
segurança - embora apenas uma falsa segurança. Nas questões identitárias
joga-se o medo, a ameaça potencial de que o outro representa ao nosso
bem-estar. São respostas que apenas pedem um porta-voz, um agitador.
Todas as culturas que se fecham sobre si
próprias têm os seus dias contados. A regeneração faz-se sempre num meio
caminho entre o dentro e o fora, pela possibilidade de integrar o diferente. Se
bem feita, dela se sai depois mais forte e coeso, embora se possa por vezes
fazer com momentos de tensão. Mas isso significa que é uma sociedade viva, que
aguenta viver momentos de ebulição interna sem desintegração.
Quando fui apicultor percebi que uma
colmeia, como uma sociedade humana, são organismos vivos. E que em crise há
formas diferentes de se resolver problemas: pode ser pelo golpe palaciano, pode
ser por encontrar novas soluções. Numa colmeia, ou numa sociedade humana.
A concorrência em espaço mais ou menos
aberto torna-nos melhor preparados para inocular os “vírus”, sendo que há uma
tendência natural para todo o organismo repelir o que é diferente. Todo o
organismo que vive isoladamente e rejeita o diferente tem menor capacidade de
resistir; a resiliência tem que ver com criar uma série de recursos e estratégias
diferenciados que nos permitam viver a complexidade.
Sempre que nos isolamos, estamos a assinar
a nossa sentença de morte: o autismo de Luís XVI e Maria Antonieta foi o
de julgarem que os franceses estavam todos bem, que não se passava fome nas
ruas de Paris, enquanto se banqueteavam nos lustres do Palácio de Versailles,
longe das ruas escuras e dos becos da cidade. Não é que tivesse mal viverem em
Versailles e que fossem más pessoas por isso. Perderam foi a capacidade de ver
o que se passava nas ruas de Paris.
Há sempre sinais que podem fazer soar as
campainhas e que nos podem fazer pensar sobre os rumos que as coisas
levam.
Por vezes, o mal-estar pode conduzir à
divisão. Às acusações. Às facções. Conhecemos essas histórias: p.e. Trump de
quem a América se despede sem saudade. Jogou sobretudo o discurso do medo e do
ódio.
Na política joga-se sempre o jogo de mudar
o que é possível; ou de dizer que está tudo mal, deitando fogo a tudo o que
existe. Normalmente acontece que, pelo caminho, se deita o bebé fora com a água
do banho, o que me faz sempre preferir o caminho das reformas ("separando
o trigo do joio", um trabalho de paciência) ao caminho das revoluções. A
implosão interna está sempre à espreita e geralmente as revoluções acabam por
obrigar a muito tempo de recuperação; em certos casos, ao perecimento puro e
simples das comunidades.
E há quem se aproveite do mal estar, para
proveito próprio: Trump criou uns tantos entusiastas, mas virou americanos
contra americanos. Teve sucesso, mas apenas limitado e circunstancial. O
contraditório da sua acção é o de tentar fechar a América, que foi grande
sobretudo quando se abriu como destino de todos os sonhos. Aliás as nações
(como as pessoas) são grandes quando aprendem a dialogar e a contribuir para um
bem maior. Felizmente que a América tinha institucionalizada uma ordem
democrática que conseguiu repelir o subvertor. Entretanto, foi todo um
tempo perdido que se tem que tentar recuperar...
Há não muito tempo falava com um livreiro
de referência do Porto que me dizia que qualquer livro sobre Lisboa não vendia
no Porto. Que quem tinha criado essa fractura tinha sido Pinto da Costa, que
tinha criado um clima de animosidade contra Lisboa. É muito fácil incendiar; é
muito mais difícil construir pontes. Gosto muito da cidade do Porto e tenho
pena se isso for verdade: acho que a cidade do Porto personaliza em Portugal o
melhor do espírito empreendedor e de iniciativa; Portugal muito lhe deve e, sem
a cidade do Porto, seria incrivelmente mais pobre. O Infante D. Henrique nasceu
na Invicta: deve-lhe ter dado os genes, assim como D. Pedro lhe doou o coração.
Portugal, uma finisterra. Uma terra de
confluência, onde sedimentos de muitas paragens se cruzaram para aqui
permanecer. Somos dos povos com uma diversidade genética maior.
Se pensarmos em cada um de nós,
descobriremos uma base genética muito grande: eu próprio tenho do lado da minha
mãe origens no norte do país, alemãs de Hamburgo, possivelmente asiáticas
sabe-se lá como (da minha avó materna), italianas e irlandesas (do lado do meu
avô paterno, além de francesas), portuguesas e francesas (da minha avó paterna)
- e, naturalmente origens portuguesas várias e múltiplas que se escondem no
tempo, algumas delas de cristão-novo. E muitas mais que desconheço. E se formos
mais para trás, possivelmente árabes, visigóticas, romanas, trácias...
Tenho amigas ruivas, vieram certamente de
celtas; tenho amigos com narizes aduncados que são semitas.
Olhamos para o arquitecto Siza Vieira e,
sem muita imaginação, podíamos ver um sábio semita.
Roberto Carneiro tem origens chinesas.
A família Spínola ou os Pessanha são
descendentes de genoveses.
Paulo Portas é descendente de galegos.
António Costa tem raízes goesas.
Na região do Douro abundam famílias de
origem inglesa, alemãs, holandesas, dinamarquesas - ligadas muitas delas ao
comércio do vinho do Porto.
Um dia numa câmara municipal conheci uma
Senhora de apelido “Beites.” Este nome intrigava-me. Descobri pela própria que
era descendente dum soldado inglês (“Bates”) que andou pelas beiras nas guerras
peninsulares.
Não será isto uma enorme riqueza? Algo que
nos dá uma grande resiliência, que nos permite respostas diferenciadas, tal é a
riqueza das origens. Lembro-me de ouvir falar Roberto Carneiro - que conhecia
profundamente a cultura chinesa - sobre os seus contributos nas negociações com
a China, aquando da entrega de Macau; António Costa para a presidência
portuguesa da UE pensa em celebrar acordos estratégicos entre a Europa e a
Índia: serão indiferentes as suas raízes na Índia?! Creio que não.
Na verdade, aconselharia muitos dos nossos
líderes a irem a Monserrate e a verem como a diversidade reina num lugar de
extrema beleza. Há lá árvores e espécies de todo o mundo, plantadas nos locais
certos, tirando partido das condições naturais do terreno: há o Vale do México,
virado a sul (mais solarengo), por contraste, as camélias, ou “japoneiras”
estão num local para não estarem muito expostas, etc.
Uma das formas melhores de criar momentum é
arranjar bodes expiatórios. Parece que com isso expurgamos o mal. Hitler fez
isso com os judeus, criando os bons que seriam os "arianos" embora
também ele próprio tivesse costelas judias. Churchill por exemplo tinha muito
orgulho na sua parte de sangue indígena americano, ligava-o mais de perto ao
passado do seu povo inglês, que andou pelos mares e que desbravou a América.
Em cada português contam-se inúmeros
antepassados emigrantes; cruzamentos diversos. E isso é completamente
transversal a toda a sociedade: famílias aristocráticas com sangue fora do
território europeu, por exemplo.
Poderíamos ver os imigrantes como
quem vem fazer o trabalho que os portugueses não querem fazer. Um
enriquecimento. O discurso deveria ser antes o de perceber porque em certos
casos poderá haver problemas, os quais residem muitas vezes na nossa
incapacidade de integrar. Mas antes e acima de tudo imigrantes são
"pessoas"!
É muito tentador e bom para a nossa
auto-estima que nos digam que nós somos os puros e os bons, os outros os
impuros e maus quando há problemas. É um raciocínio pueril, fácil e perigoso.
Mas há quem tente reunir as forças e
tentar unir. É um caminho mais difícil (pense-se em Gandhi entre hindus e
muçulmanos), leva mais tempo, mas é mais frutuoso e sustentável.
Há situações certamente difíceis, podemos
pensar nos ciganos, por exemplo, onde se exige responsabilidade por parte dos
actores políticos. Do ponto de vista cultural deve haver uma forma de respeitar
as suas especificidades, tentando que respeitem as regras do Estado de Direito
que todos, sem excepção, devem respeitar. Deverão por exemplo as crianças
ciganas ir à escola? Sim, porque é uma questão de dignidade humana. Deverão
receber o Rendimento Mínimo de Inserção - deve ser questionado se sim, fazendo
uma avaliação criteriosa. Mas temos que aprender a viver em conjunto e não deve
haver guetos na nossa sociedade porque isso é muito perigoso.
Admiro homens na história como de Gaulle
que em momentos de forte crise souberam fazer pontes. De Gaulle fez
isso na França quase derrotada no período da 2.ª Guerra Mundial; Nelson Mandela
fez isso depois de ser libertado.
A Resistência Francesa uniu homens que
amavam e acreditavam numa França livre, da direita à esquerda. Quando criou
Governo, De Gaulle teve comunistas a seu lado. Era um gigante, sabia unir
para o bem maior do seu país. Era caso aqui para dizer que de Gaulle
seguia a velha máxima de Santo Agostinho que dizia que “se queres conhecer uma pessoa não perguntes
o que ela pensa, mas sim o que ela ama”. Ele não tinha o exclusivo de amar
a França. Na diversidade, o General de Gaulle era a araucária de
Monserrate que vigia todo o Parque.
Há que olhar para a realidade e perceber.
Nem sempre a solução é ficar no nosso cantinho, no espaço do nosso conforto, no
nosso "Palácio de Versailles". O que temos que fazer para ultrapassar
as crises?
Quem são as pessoas de "boa
vontade" que podem dar as suas mãos? Encontramos em todo o lado! E gosto
de crer que o povo é sábio e que sabe reconhecer de que lado está o equilíbrio
e a razão.
E há sempre muitos recursos escondidos na
sociedade, basta que exercitemos o esforço de ver, de estarmos atentos. E de
exercitarmos o nosso olhar para fora do espaço do nosso horizonte imediato. A
realidade é muito mais rica do que parece à primeira vista.
Há por exemplo empresas que são
extraordinárias em encontrar oportunidades, algumas delas em contextos que
diríamos não serem os mais óbvios. Pense-se na Tomi, no interior de Portugal,
em Viseu. Uma empresa extremamente inovadora no domínio das novas tecnologias e
que aí está no mundo global a se bater de igual para igual com as
melhores.
Pense-se na Delta Cafés, que vem do
interior do país, dee Campo Maior, uma empresa que "puxa" pelas
pessoas. Em tempos de pandemia comprou refeições aos restaurantes fechados para
dar aos mais necessitados.
Aprender a confiar é aprender a viver em
sociedade. É isso que constrói o nosso capital social, a tessitura que permite
vencer as crises. Às vezes as lideranças acontecem de onde menos se espera!
Por vezes, recursos a mais estragam mais,
do que criam espaços de comunidade. O capital social nasce talvez mais da
carência do que do excesso.
No Douro, por exemplo, a minha amiga
Isabel Furtado de Mendonça dizia que não tinham havido ocupações depois do 25
de Abril, sendo os trabalhadores das quintas os primeiros a se colocarem à
entrada das propriedades para impedir quaisquer tentativas: havia o costume de
se pisar uva em conjunto, uma festa colectiva que juntava todas as classes. Se
calhar com a mecanização já se está a fazer perder algum desse
capital social .
No voluntariado também ensaia-se o
trabalho em prole de algo maior do que nós. Aprendemos a ver a humanidade mais
do que a diferença: nos outros voluntários com que trabalhamos em conjunto, não
nos perguntamos quem são ou donde vêm, estamos ali para uma mesma missão:
em-fazermos-juntos-para-o-outro.
Se olharmos para países como a Holanda
percebemos que foi da carência que esse povo soube criar uma enorme capacidade
de resolver problemas: os diques holandeses são uma vitória incrível de
empreitada colectiva. Se não juntassem mãos, pura e simplesmente os holandeses
não teriam país. Estaria submerso em água.
Outro-tanto se diga de suecos ou
noruegueses, que se nos seus duríssimos invernos não se soubessem
organizar, não conseguiriam sobreviver.
Nós portugueses precisamos muito destas
coisas. Ainda desconfiamos muito uns dos outros:
"O Estudo
Europeu dos Valores, realizado em Portugal pelo ICS da Universidade de Lisboa,
em 1990 e 1999, obteve dados que permitem caracterizar a confiança que os
portugueses têm uns nos outros (confiança interpessoal) e a confiança que têm
nas instituições. No que respeita à confiança nas instituições, Portugal mostra
um nível de confiança nas instituições superior aos países da EU, apenas com
quatro excepções: confia menos no Sistema Educativo, no Sistema de
Segurança Social, nos Tribuanis e no Sistema Nacional de Saúde. Entre 1990 e
1999, o índice de confiança dos portugueses subiu, em relação a todas as
instituições, com excepção do Sistema de Segurança Social e dos
Tribunais, tendo-se mantido estável no caso do Sistema Educativo.
Os indicadores de
confiança interpessoal mostram que os portugueses confiam muito menos nos
outros do que a média dos cidadãos da EU. De acordo com os dados apurados,
cerca de 90% respondem que na relação com as outras pessoas, "todo o
cuidado é pouco" e apenas 10% que "pode-se confiar nos outros".
Os resultados podem
parecer surpreendentes mas, do nosso ponto de vista, são coerentes com as
atitudes culturais que anteriormente identificámos. Um dos aspectos que pode
ajudar a compreender o baixo grau de confiança interpessoal (sem que se trate,
necessariamente de uma relação de causalidade) é a atitude em relação às
pessoas de maior poder”.
(in, Formação de
Executivos UCP - As Atitudes Culturais dos Portugueses e a sua influência na
Gestão", Prof Luís Caeiro).
Quando estava na tropa, cumpri durante uns
meses um período de colocação numa unidade militar em Lisboa, o Regimento de
Transmissões na Graça. Sempre que ficava de oficial de dia, era responsável
pelo quartel. Ora havia um ritual que se fazia sempre que era abrir as senhas e
as contra-senhas e distribuir os horários de vigília durante a noite: eram três
turnos.
Era prática no quartel que o oficial de
dia escolhia o melhor turno para ficar acordado, normalmente o turno das 21h00
à 1h00. O pior deles era o das 1h00 às 4h00 da manhã pois cortava completamente
a noite. O das 4h00 às 8h00 era menos mau. Ora eu instituí um sistema que era o
de fazer a atribuição por sorteio. Por que raio deveria eu ficar com o melhor
turno e os sargentos com os piores?! Eles não perceberam porque razão eu fazia
isso… e no sorteio acabava sempre por ficar com o pior turno, o das 1h00 às
4h00... Foi um pequeníssimo gesto, praticamente insignificante que me deu
para perceber que eles estavam habituados a viver num mundo em que quem está em
cima preocupa-se antes de mais com o seu “umbigo”.
Um exemplo muito claro desta desconfiança
que reina em Portugal, é que as pessoas escondem a sua riqueza. Em França/na
Suíça nas portas de todas as casas está o nome dos seus proprietários. É uma
forma de identificação, para correios, etc. Em Portugal é muito raro isso
acontecer… será isto um resquício da nossa herança árabe, em que a vida privada se esconde do exterior?!
Mas se perguntarmos bem o que é que nos
preocupa a todos? O que nos une?
Preocupa-nos o futuro do nosso país, das
nossas crianças, o que iremos deixar para elas. Quer nasçamos na Lapa ou na
Reboleira, em Chaves ou na Amareleja no profundo Alentejo é esse o nosso maior
anseio. Todos sonham no futuro dos seus filhos.
Isto é algo absolutamente congregador. É
isso que nos une, e é com esse fio ténue de confiança entre uns e outros que
temos que construir o nosso país e dar as mãos pois queremos que o barco
continue a encontrar novas paragens e novos portos. Portos seguros.
O futuro é um empreendimento comum, pois
estamos todos no mesmo barco e não consta que nos bancos da escola as crianças
distingam entre quem é filho deste ou daquele.
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