O sobreiro e o cipreste - afinal, quem são os portugueses?!

Há uns anos estive na Bélgica e fui a um festival de cavalos perto de Bruxelas dedicado ao cavalo lusitano. Estava nessa altura a trabalhar em Paris e aproveitara um fim-de-semana para me meter num combóio e ir ter com o meu amigo Zé Freixa. O Zé  pertence a uma família de santanenses, os habitantes de uma pequena aldeia no Concelho de Arraiolos, Santana do Campo (a minha família tem uma propriedade por perto).

Sou amigo do Zé, ele foi um jovem que foi "agarrado" por José Manuel de Mello e colocado na equipa de atrelagem da Herdade da Ravasqueira, que competia internacionalmente por Portugal, comandada pelo belga Felix Brasseur, tendo chegado a campeã do mundo.

Fiquei impressionado quando cheguei à feira de Bruxelas. O Zé Fernando - como eu o tratava, era um “moiro” de trabalho. Ele e um ajudante brasileiro, o Patrick, levantavam-se de madrugada todos os dias e treinavam várias horas os cavalos. Uma disciplina férrea, uma rotina muito violenta, fizesse sol ou chuva. Eram a frente armada dum combate para serem os melhores.

Nesse dia em que cheguei, os cavalos estavam a brilhar, tinham passado horas a entrançá-los, um trabalho da maior paciência. Nessa tarde, iriam apresentar os cavalos engatados ao público belga no grande picadeiro coberto. Acompanhei tudo: depois de horas de trabalho do Zé e do Patrick, Felix Brasseur chega. Impecavelmente vestido, de tweed e de chapéu de velcro. Pergunta ao Zé como estavam os cavalos. Senta-se no atrelado e, em alto estilo, direito e com o seu chapéu estende verticalmente o chicote e, com um movimento circular dos pulsos, desenrola-o lentamente. Com uma extrema serenidade arranca para a arena do picadeiro, com o Zé e o brasileiro atrás para equilibrar o atrelado.

O público belga fica rendido: a exibição é um sucesso, o picadeiro estremece com as palmas. Felix Brasseur entrega os cavalos ao Zé e vai ter com a sua bela mulher, que levara o filho pequeno ao colo e que ficara a assistir ao grande mestre.

Poucos anos depois estudei numa pequena universidade em Saint-Germain-des-Prés, em Paris. A Teresa, oriunda de Trás-os-Montes era a "concierge" e a pessoa que resolvia todos os problemas práticos que havia: fazia de recepcionista, tirava fotocópias, dava recados, sabia de tudo o que se passava, era querida por todos e "surfava" pelo meio de chauvinismo de funcionários e feitios difíceis dos professores. Toda a gente sabia quem era a "Thérese". Vivia num pequeno apartamento com a sua família, o seu marido e dois filhos, no próprio espaço da Universidade e, com a presença dela, senti-me mais em casa. No filme "Gaiola Dourada" temos um retrato divertido e muito bem feito da vidas desses emigrantes em Paris.

São exemplos de pessoas que se tornam como que imprescindíveis, mas que estão na base da sociedade e dos seus sucessos.

Outros exemplos temos de pessoas que se destacam internacionalmente por estarem em lugares de topo e de liderança: pensemos no Mourinho ou em Horta Osório.

A verdade é que Portugal quase nunca se destacou por grandes lideranças, pela qualidade das suas elites. O caminho de Portugal quase sempre se fez por tentar destruir todas as possíveis formas de oposição ao poder, ao Estado. D. João II tentou acabar com o poder de quem lhe fazia frente, o Marquês de Pombal também, de forma muito notória. A história diz-nos que D. João I tentou sobretudo valorizar a pequena nobreza e a burguesia.

Em Espanha, os grandes da Espanha, eram em certos casos mais poderosos e ricos que o rei. Pense-se p.e. no Duque de Alba e no enorme poder que tinha. Enquanto que em Espanha podemos pensar em grandes senhores, em figuras verdadeiramente afirmativas que podem desafiar o poder régio, Portugal teve quase sempre os nobres debaixo da vigilância estrita dos monarcas. As elites portuguesas nasceram quase sempre por alianças momentâneas com o poder, são oligárquicas, e sempre que o poder mudou, passaram para a mó-de-baixo (actualmente por exemplo muito faz por exemplo uma ACEGE, associação cristã de empresários e gestores, que se funda numa visão da sociedade aberta e inter-classes, em respeito aliás pela sua génese cristã).

A sabedoria popular portuguesa habituou-se a olhar com desconfiança para o poder, dado que as elites quase nunca se apresentaram verdadeiramente interessadas em criar laços duradouros, simplesmente porque não sabiam como - e porque não se criam elites dum dia para o outro. Uma elite é resultado duma educação transgeracional, tem que ver com uma leitura do mundo que não é feita apenas com dinheiro.

Nesse aspecto, vale a pena revisitar livros como Don Quixote de La Mancha, porque é uma parábola muito interessante sobre duas identidades muito diferentes dentro da Península Ibérica.

Se andarmos pelo Minho, vemos que as pessoas pouco se diferenciam dos galegos.  A "Galícia", tal como o Minho é feita de gente pequena fisicamente e que é também "raia-miúda". Os grandes da Espanha estavam em Leão e Castela, não ali.

“Segundo Saint-Simon - que foi embaixador da França na Espanha e procurou estudar as condições da nobreza espanhola o mais minuciosamente possível - na Espanha primitiva não existiam propriamente títulos de nobreza, como marquês, conde, visconde, barão etc. Mas havia os chamados ricos-homens - designação existente também em Portugal - que indicava grandes proprietários rurais. Eram, portanto, verdadeiros pequenos reis. Esses senhores eram igualmente designados os grandes, porque se destacavam da massa da população pela sua grandeza.

Eles eram grandes, à maneira espanhola. O que era próprio do espanhol?

Uma tendência para a perfeição, que deve ser inerente a todo nobre, mas que no homem hispânico corresponde a uma avidez da perfeição, na coragem. O nobre espanhol, sobretudo o Grande de Espanha, deve mostrar-se desejoso de uma grandeza na coragem de arriscar a própria vida por amor à Fé, por amor aos bons princípios e por dedicação ao bem comum. Arriscar sua vida, mas com elegância, com generosidade, com o desempenho com que o espanhol marcha para a morte quase como quem caminharia para uma gala, para uma cerimónia social importante. Com um passo que seria quase um passo de dança, tal a altaneria e a generosidade com que ele o faz.

E se ele morrer no campo de batalha, derramando seu sangue, uma coisa que no espanhol não se deve notar é pena de si. Pelo contrário, ele morre na tristeza de não ter podido liquidar o adversário; na esperança de que, deitado por terra, ainda tenha um último movimento de energia para liquidar o vilão que o derrubou.

É oportuno, a propósito, citar um facto pitoresco e significativo. Certo nobre espanhol, comentando o famoso Duque de Alba, Grande de Espanha e herói da luta contra o protestantismo, afirmava que ele cheirava continuamente a ferro e sangue. E o célebre Duque enviou-lhe esta resposta, eminentemente espanhola: «Diga-lhe que este é o cheiro que convém a um homem ter»".

http://catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/A2A506C5-D0B7-B67F-B1531369DB75F7D2/mes/Abril2004

Este ideal de cavalaria que Miguel de Cervantes acaba por nos oferecer numa bandeja de prata, num romance que nos coloca a rir a bandeiras despregadas, é certamente não muito diferente do ideal de cavalaria de um D. Nuno Álvares Pereira, ou de outros intrépidos heróis da nossa história como D. João de Castro. Em relação a este, um homem honrado, que era conhecido pela sua enorme barba que era como que o cabelo de Sansão, diz-se que a empenha para salvar o seu filho, feito prisioneiro pelos turcos. 

Mas são talvez minoritários estes homens e vemos assim um Afonso de Albuquerque, que tem a ferocidade mais própria dum hispânico, mas que tem ele próprio também a habilidade de perceber que a expansão portuguesa se teria mais que fazer pela inculturação do que pela afirmação. Daí que tenha dado ordem aos portugueses para se misturarem na Índia.

Em boa verdade, a nossa expansão acusa muito mais a força da "raia-miúda" que se faz ao mundo do que a afirmativa duma conquista. É pela emigração. É pela necessidade de partir, de procurar melhores terras, de fugir à pobreza.

Assim, dentro de portas e fora de portas, o que ganhou foi mais o espírito de Sancho Pança.

Mesmo a cultura religiosa portuguesa valoriza mais o homem piedoso do que o mártir. Portugal tem poucos santos; em Espanha, podemos contar largas dezenas. A santidade exige virtudes heróicas, em Portugal a santidade é sinónimo das pequenas virtudes. Santo António é muito mais valorizado pela sua piedade e por ser um santo milagreiro, amigo dos pobres e dos desvalidos, das meninas solteiras e de abençoar as bodas. Não se valoriza a sua coragem, a sua dimensão de homem culto, a sua verbe acutilante e mordaz.

O retrato do português é muito mais assim pelo lado do Sancho Pança, do que pelo lado de D. Quixote. Ambos têm qualidades e defeitos.

Em Espanha a afirmativa leva ao sangue. A guerra civil espanhola foi uma carnificina. Ambos os lados guerrearam até à morte. Não vimos nada assim em Portugal.

O bom-senso de Sancho Pança é algo importante, os portugueses raramente embarcam em delírios colectivos. Se já se disse que, pelo humor inglês, Hitler seria ridicularizado, também creio que em Portugal nunca seria eleito, simplesmente porque os portugueses têm medo de loucos.

Ouçamos Sancho Pança, virando-se para o seu senhor:

- Senhor, eu sou homem pacífico, manso, sossegado, e sei dissimular qualquer injúria, porque tenho mulher e filhos a sustentar e a criar. Assim que a vossa mercê tal sirva também de aviso, pois não pode ser mandato, que de nenhum jeito porei eu mão na espada, nem contra vilão nem contra cavaleiro, e que aqui diante de Deus perdoo quantos agravos me haja feito ou a fazer pessoa alta ou baixa, rico ou pobre, fidalgo ou plebeu, sem excepção de estado nem condição alguma (Parte I, Cap. XV). 

Houve no passado alguns delírios, o Rei D. Sebastião liderou um dos últimos, nele pereceram os nobres das famílias mais destacadas da corte. Geralmente o povo não alinha nesses desvarios; por outro lado, o povo é um povo que não tem uma vida fácil e que normalmente gosta de escolher os seus para o governarem. Não gosta de escolher "finórios".

O problema de todos os partidos políticos de quadros como o CDS, ou como agora como a Iniciativa Liberal, é que as pessoas associam esses partidos como os partidos dos "ricos". Nunca conseguem passar da casa dos 4% porque esses partidos representam a base sociológica minoritária dos seus dirigentes. As suas ideias serviriam para mudar muito, mas são articulados demais e o povo desconfia das suas intenções.

A grande inteligência por exemplo de um Marcelo Rebelo de Sousa é que conseguiu sair da sua base sociológica de origem, para se identificar com o povo. Ou seja, conseguiu, que o povo o visse como uma pessoa simples, de vida frugal, beijoqueiro, o homem das "selfies". E na realidade, não deixa de ter alguma autenticidade nisso: vive numa casa alugada, não é um homem rico.

Mas naturalmente que o discurso de um André Ventura vai direito ao coração dos portugueses: é um discurso que já tantos ouvimos a taxistas: "eles são todos iguais", "isto é tudo uma pouca vergonha". Com efeito, André Ventura, acaba por ser uma espécie de justiceiro, acusando a "roubalheira" instalada.

Em Espanha, por contraste, o PP sempre foi um partido com que as pessoas mais à direita se identificaram e que acabou por ter um grande peso. Paulo Portas tentou fazer isso também por cá, virar o partido muito mais à direita, tentando aplicar o modelo espanhol. O seu carisma não foi suficiente, apesar de andar pelas feiras e mercados: em Portugal o povo nunca iria atrás duma direita educada nos salões de Lisboa, dum discurso que fosse o de lutar contra o Estado, a favor de uma economia mais livre, a favor das empresas. Ainda demasiada gente conta com o pão do Estado, talvez cada vez mais. Embora o discurso desta direita seja o de que é mais importante "a cana" do que o "pão", apenas alguém de toda a confiança merecerá o crédito do povo - e a ver vamos...

A direita sociológica espanhola é muito mais vasta que a portuguesa, porque culturalmente a direita é mais aceite por lá. Um Aznar dificilmente seria Governo em Portugal. O povo em Portugal identifica-se mais com um discurso de quem lhes fale directamente, mais populista, menos sofisticado, menos punhos de renda. Há em Ventura uma espécie de acerto de contas do povo com os dirigentes, daí o seu sucesso.

Assunção Cristas não conseguiu essa união com os portugueses. Marcelo conseguiu, ao fim de muitos anos de programas de televisão. O povo português é desconfiado e se calhar não lhe perdoou algum tergiversar.

Enquanto qualquer rapariga espanhola como Letícia sonha um dia parecer-se como as pessoas da "Holla!", e talvez quem sabe se tornar uma princesa, em Portugal, nos casamentos de gente fina dança-se ao som do "apita ao combóio" de Quim Barreiros. Em Portugal a cultura é uma cultura popular, é uma cultura das feira novas do Minho ou da feira da Golegã.

Em Espanha, as raparigas todas pintam-se e vestem-se bem, por vezes de forma excessiva. Em Espanha olha-se para quem está em cima; em Portugal o chique é umas calças rasgadas no joelho.

Quem são os portugueses afinal?!

São um povo resistente. Há uns anos dizia um audaz empresário português, “ai aguenta, aguenta!”. Um sobreiro resiliente, que sofre chuva e calor; mas que também pela sua inércia pode ceder ao facilitismo e a acomodar-se, não querendo qualquer mudança, tornando-se invejoso. Que, quando valorizado e reconhecido o seu poder de entrega, pode ter grande brio no que faz. E isto porque tem dentro de si um coração que está ansiando por se dar ao outro.

Já escrevia Jaime Cortesão que a nossa maneira de ser era o da "plasticidade amorável": que se dá ao outro generosamente, acolhendo-o e indo ao seu encontro, a ele se moldando. Há uma simpatia no português que é raro encontrar noutros povos.

Curioso que apenas talvez Sá-Carneiro pertencesse à categoria de D. Quixotes, cultos e idealistas que tiveram sucesso em democracia. Talvez tivessem reconhecido nele uma autenticidade, que não encontraram num pragmático como Mário Soares (de uma elite de Lisboa) que tentou sempre fazer o discurso dos socialistas a favor dos pobres (mas que às tantas resolveu pôr o socialismo na gaveta), que numas eleições presidenciais os portugueses puniram fortemente - o que foi para ele uma enorme humilhação.

É um povo que tem horror aos punhos de renda e que está sempre à procura de uma voz que o represente. Que gosta de homens/mulheres valentes que falem uma linguagem que todos entendam, com autenticidade.

Mas também tivemos os nossos príncipes. Os nossos D. Quixotes, os nossos ciprestes.

Raul Lino adaptou o cipreste como ideal de vida, inspirado na leitura do livro o "Jardim das Flores" do Xeque Sadi de Shiraz:

Um dia perguntaram a um sábio, «entre as muitas árvores célebres que o Altíssimo Deus criou altaneiras e umbrosas, nenhuma é chamada azade, ou livre, exceptuando o Cipreste, que não dá frutos. Qual o mistério disso? O sábio replicou: Cada uma tem o seu fruto adequado e a sua estação determinada, durante a qual fica fresca e florida e fora dela seca e murcha; o cipreste, não está sujeito à variação de estados, está sempre a florescer. Da mesma natureza são os azades ou religiosos independentes. Não ponhas o teu coração no que é transitório porque o Dijlah, ou Tigre, seguirá fluindo através de Bagdade mesmo depois de a raça dos califas se extinguir. Se tuas mãos estão cheias, sê liberal como as tamareiras, mas se estão vazias, sê um azade, ou um homem livre como o cipreste.»”



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