A utilidade do inútil

Há não muito tempo ofereci um livro a um amigo meu francês até recentemente residente em Lisboa, o Guillaume, "a utilidade do inútil, manifesto", de Nuccio Ordine.

Em várias conversas que fui tendo com o Guillaume, ele indignava-se contra uma cultura muito liberal, preocupada sobretudo com o ganho, algo que ele dizia, de uma forma bastante assertiva, de que se tratava de uma mentalidade que esquecia a "Encarnação"... Bom, não irei entrar em questões teológicas - deixo isso para quem sabe desses assuntos metafísicos -, embora me pareça que a maneira como vivemos é muito influenciada pela cultura subjacente a determinado quadro mental que se foi sedimentando, onde também se identificam raízes religiosas. Na composição da Europa identificamos países protestantes e países católicos, sendo evidentes duas maneiras de viver as coisas, que marcam a vida nesses dois universos e que, de forma algo simplista, poderíamos situar uma no norte e, outra, no sul da Europa, o que estará também estado na mente de pensadores como Max Weber  ("A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo").

No livro que ofereci ao Guillaume - e que estou agora a ler com muito interesse -, o autor toca numa questão fascinante que tem a ver com a tal questão da forma como vivemos e dessa mentalidade muito virada para o ganho, o lucro que é a que se vive actualmente e com a qual o Guillaume tanto se indignava. 

Nuccio Ordine é um italiano, professor de literatura italiana na Universidade da Calábria, no sul da Itália. Creio que se percebe que um livro destes seja escrito por um homem do sul da Europa e bem percebo muitas vezes os gritos (pouco meditados), de pessoas que como ele tentam dizer que na Europa o discurso não pode ser apenas ditado por folhas de Excel (são certamente importantes, mas tem que haver mais do que isso). Nem que seja aceitável o juízo de que as pessoas do sul da Europa são preguiçosas, pressupondo uma certa vantagem ética na forma como se vive no norte da Europa. Lembro-me a este propósito de conversas que fui tendo com pessoas minhas amigas, nomeadamente respeitante a certas culturas mais a norte da Europa em que cada pessoa se preocupa sobretudo com o seu quintal, bastante menos generosas do que o que se assiste de espírito comunitário e convivial em geografias mais a sul da Europa (registe-se que isto são apenas traços gerais, tendências, não se pretende que seja uma lei "geral e abstracta"...)

A provocação de Nuccio Ordine com o seu título "a utilidade do inútil" é a de nos perguntar realmente o que é que nos ajuda a tornar-nos "melhores". Não haverá "utilidade" no aparentemente "inútil" - aquela de nos tornar "melhores"?!

Quando se destroem bibliotecas no centro das cidades porque, por exemplo, é mais lucrativo fazer um centro comercial nesse belo edifício, temos bem colocada a dimensão do problema; quando velhas livrarias dão o lugar a uma loja de sapatos de ténis de uma marca global qualquer, vemos a gravidade do assunto (a propósito, Charles Landry que é um pensador da vida das cidades, tenta pensar de que forma isso se poderá evitar; em Lisboa, por exemplo criaram-se as "Lojas Históricas", algo que visa proteger estes espaços de identidade da delapidação).

Churchill, que era um apaixonado por teatro (sabia trechos de cor de peças de Shakespeare), que escreveu uma série de livros sobre história de Inglaterra e que pintava magnificamente, dizia que se não fosse pela cultura, pela memória, por salvar uma civilização, talvez uma guerra como a 2.ª Guerra Mundial não tivesse valido a pena; numa conversa com Charles de Gaulle, o seu amigo íntimo amigo Ministro da Cultura André Malraux dizia que os destinos de um e de outro eram essencialmente "espirituais".

Porém Ordine, que escrevia por altura da plena crise das dívidas soberanas (2013), considera que "hoje a Europa parece um teatro em cujo palco se exibem quotidianamente, sobretudo, credores e devedores. Não há reunião política ou cimeira da alta finança em que a obsessão com os orçamentos não constitua o único ponto da ordem do dia (...) Sem se interrogarem sobre os motivos que levaram as empresas e os Estados a endividarem-se  - estranhamente, o rigor não faz mossa à corrupção que prolifera (...)". 

E mais há frente diz-nos: "já Rosseau observara que os «antigos políticos falavam sem descanso de costumes e de virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro»". 

Remata Ordine em jeito de conclusão ao entróito do seu livro, que "a utilidade dos saberes inúteis contrapõe-se radicalmente à utilidade dominante que, em nome de um interesse económico exclusivo, vai matando progressivamente a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a instrução, a investigação livre, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte cívico que deveria inspirar todas as actividades humanas. Efectivamente, no universo do utilitarismo um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave inglesa mais do que um quadro, porque é mais fácil perceber a eficiência de um utensílio e cada vez mais difícil compreender para que servem a música, a literatura ou a arte".

Fala-nos também Ordine de Maynard Keynes, o grande economista britânico: "Até John Maynard Keynes, pai da macroeconomia, revelou numa conferência, em 1928, que os «deuses» em que se apoia a vida económica são inevitavelmente génios do mal. De um mal necessário que, «pelo menos ao longo de outros cem anos», nos obrigaria a «fazer de conta que o bem é mal e que o mal é bem; porque o mal é útil e o bem, não». Isto é a humanidade teria de continuar (até 2028!) a considerar «a avareza, a usura e a cobiça» vícios indispensáveis para nos «guiarem para lá do túnel da necessidade económica, até vermos a luz». E só então, tendo alcançado um bem-estar generalizado, os netos - o título do ensaio, Perspectivas Económicas para os Nossos Netos, é muito eloquente! - poderiam finalmente compreender que o bom é sempre melhor que o útil: Nessa altura, penso que possamos recuperar alguns princípios religiosos e valores mais sólidos, e voltar a afirmar que a avareza é um vício, a usura um comportamento reprovável, e que a cobiça repugna; e quem não pensa no futuro avança com mais ligeireza pelo caminho da virtude e da sabedoria".


O Cinema Tivoli, na Avenida da Liberdade, de que fiz com o João Monteiro Rodrigues um livro, é um case study de tudo isto: nasceu num mundo mais calmo e não tão ditado por lógicas binárias lucro/perda, demonstrou o quão importante a cultura pode ser para dar vida (simbolicamente representado pela efemeridade de um bouquet de rosas, tal como um espectáculo com o seu "perfume") e que não deixou de se ver mutilado na década de 80 por lógicas agressivas de delapidação (foi amputado em grande parte para se construir um centro comercial...) 

Realmente um bouquet de flores não serve para muito, não nos tira a fome depois dum dia de trabalho Mas certamente que nos serve para tornar a nossa vida mais bonita - e para nos reconectar, o mesmo que nos diz Makoto Fujimura no seu livro "Culture Care: Reconnecting with Beauty for our Common Life", um artista e pensador de origem japonesa radicado nos EUA, que nos convida a um estilo de vida mais holístico e integrado, realçando a importância da "poesia" na "prosa" dos dias...

 


 

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