As metáforas
Quantas vezes não pensei no passado que seria bom que alguém no nosso parlamento conseguisse encostar Sócrates às cordas com o poder das metáforas, com a ironia mordaz e fina que uma boa imagem pode permitir para pôr a nu a hipocrisia, a arrogância e a falta de seriedade desse político, que jogava sempre ao ataque... alguém tão capaz com as palavras como com o espadachim quanto um Cyrano de Bergerac.
Dizia Cyrano: “Quando falo, a alma encontra em cada uma das minhas palavras a verdade que ela tateia”; ou: “Um homem contém tudo o que é necessário para fazer uma árvore. Da mesma forma, uma árvore contém tudo o que é necessário para formar um homem. Então, finalmente, todas as coisas são encontradas em todas as coisas, mas precisamos de um Prometeu para destilá-las”. Ele era esse Prometeu: “O anjo disse-me em sonho que se eu quisesse adquirir o conhecimento perfeito que eu queria, teria que ir para a lua. Lá encontraria o paraíso de Adão e a Árvore do Conhecimento".
Vi em Bagão Felix um homem assim, inteligente e rápido, capaz de articular números e palavras, emoções e razões, princípios e valores, de pensar o bem e o mal. Creio que já estará afastado da política, mas ainda é uma voz na sociedade.
Nas leituras que faço sobre Abraham Lincoln encontro essa capacidade, essa mestria de invocar, que convoca todos à escuta, que arruma numa curta história a moral da história. Ninguém fica indiferente a uma boa história bem contada. Lincoln era assim: por vezes, depois de estar sentado horas à sua secretária, com um olhar melancólico, levantava-se e transmutava-se por completo. Normalmente começava assim: “isso lembra-me uma história…” Quem o conta é Herndon, com quem Lincoln partilhava o seu escritório de advocacia.
Perguntada pela sua mãe sobre o que lhe dizia Mário, o carteiro de Pablo Neruda, diz-nos António Skarmeta que Beatriz lhe terá respondido:
A mãe agarrou-se à maçaneta da sua rústica cama de bronze, apertando-a até se
convencer de que conseguia derretê-la.
– O que tem, mãe? O que ficou a pensar?
A mulher veio para junto da rapariga, deixou-se cair em cima da cama, e com a
voz a desvanecer-se disse:
– Nunca te ouvi uma palavra tão grande. Que “metáforas” te disse?
– Disse-me… Disse-me que o meu sorriso se estende como uma mariposa no meu
rosto.
– E que mais?
– Bem, quando disse isto eu ri-me.
– E então?
– Então ele disse uma coisa do meu riso. Disse que o meu riso era uma rosa, uma
lança que se desembainha, uma água que estoira. Disse que o meu riso era uma repentina
onda de prata.
A mulher humedeceu os lábios com a língua trémula.
– E então o que fizeste?
– Fiquei calada.
– E ele?
– O que mais me disse?
– Não, filhinha. O que mais te fez! Porque o seu carteiro além de boca há-de
ter mãos.
– Nunca me tocou. Disse que estava feliz de estar deitado junto de uma jovem
pura, como à beira de um oceano branco.
– E tu?
– Eu fiquei calada a pensar.
– E ele?
– Disse-me que gostava de mim quando ficava calada, porque estava como que
ausente.
– E tu?
– Eu olhei para ele.
– E ele?
– Ele olhou também para mim. E depois deixou de olhar-me nos olhos e ficou
muito tempo a olhar para o meu cabelo, sem dizer nada, como se estivesse a
pensar. E então disse-me “falta-me tempo para celebrar os teus cabelos, um por
um devo contá-los e louvá-los”.
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