A arte do encontro

Até onde podemos ir na vida? Será o sonho a comandar, como diria o poeta da Arrábida, Sebastião da Gama?! 

Na semana passada tive alguns encontros, cheios de cor. 

Há tempos, quando lancei o meu livro "Quo Vadis, Portugal?" fui apresentá-lo na Casa Veva de Lima, alguém na assistência escutou. Era uma senhora, uma psiquiatra, provas dadas, autora de livros. Uns meses depois, a semente despontou e recebo um telefonema. Endereçava-me um convite para jantar em sua casa: iriam uns tios meus, no meio de um grupo grande. Interessou-se pelas minhas ideias, achou que valeria a pena jantarmos, falarmos. 

Assim, 5.ª feira, depois dum almoço em que conversara sobre o mesmo livro, com uma pessoa bem mais jovem - por sinal numa linda praça de Lisboa, dirijo-me ao final do dia lá para Paços d'Arcos, "depois da Escola Naval", como me tinha dito Maria. Sou recebido pelo seu filho e conduzido ao terraço, sobranceiro ao rio. Média das idades: aproximadamente 70 anos, grupo de 12 pessoas. 

Vichyssoise duas vezes repetida, servido num tabuleiro, vamos conversando. Passamos à mesa. Fico sentado ao lado dum senhor que foi colega de rugby do meu tio Thomaz no CDUL. É sobretudo com ele que entabulo conversa: homem culto, foi quadro superior da CUF, administrador de empresas industriais, formado em gestão pelo ISEG (antigamente ISCEF se não me falha a memória), foi aí também professor. Vou percebendo pela conversa que lido com alguém de grande bagagem, com experiência internacional e que conhece muito bem Angola. A minha tia Magui está do seu lado direito, uma pessoa conhecedora de Angola - e com os dois acabo por ficar em pé, depois do jantar a falar animadamente sobre este país, sobre os seus generais, do falecido "Zé Du", enfim das idiossincrasias deste riquíssimo país em matérias primas. A propósito: durante o jantar o meu vizinho de mesa já me tinha dito que Portugal foi mesmo predador das colónias e que achávamos que podíamos explorar da forma que quiséssemos.  

A meio do jantar, os rostos viram-se todos para mim: o dono da casa, um médico cirurgião, cultíssimo e que se dedica a fazer poemas haikai (uma tradição japonesa), pede-me para falar sobre Portugal e sobre o meu livro... Falei um pouco. Porque me haveria de encolher? Aliás, disse exactamente o que pensava: que era o direito de qualquer povo dizer-se de si, como é o direito de qualquer pessoa dizer-se de si. Portugal não é melhor, nem pior que qualquer outro país, mas é o meu país. Não se assumiu como as potências continentais europeias; a força do nosso país é mais o soft power. Adriano Moreira fala nos países exíguos, que se estribam em alianças, assim será o nosso caso.

A verdade é que fiquei um pouco envergonhado quando pensei um pouco de cá para mim a seguir À botadura da palavra. O que terei para dizer àquelas pessoas, muito mais experientes e sábias do que eu?! Sempre achei que os sábios calam mais do que dizem. Devem ter achado que eu era um jovem empertigado. Na verdade, não queria fazer nenhuma proclamação, não estava à espera daquele desafio à desgarrada. Não sou o homem do discurso na assembleia. Não sou tribuno. Mas, por outro lado, também acho que tenho algo a dizer.  

Estes encontros interessam-me, enriquecem-me. Essa noite foi uma noite boa. 

Esta semana, em casa dos meus pais, nesta linda serra de Sintra, vi um programa notável da NETFLIX: "Histórias duma geração, com o Papa Francisco". É uma série de 4 curtos episódios onde se concentram histórias humanas de uma enorme densidade. Vai-se ao essencial. 

Há uma candura no Papa Francisco. Simplicidade. Gosto nele, ele ser aberto ao outro. Em todas estas incríveis histórias de amor, de entrega, de persistência e de bondade, nunca se escrutina a ortodoxia dos caminhos. Martin Scorcese é um divorciado. Diz o Papa que quando se encontraram pessoalmente Martin Scorcese disse que o mais importante da sua vida estava ao seu lado. A mulher doente, a mulher que ele ama. É isso que conta para o Papa Francisco. Ele não foi estudar a vida de Martin Scorcese para ver se poderia apadrinhar um projecto de filme como este. A entrega do Papa Francisco é simples, desarmada. Não lhe cabe a ele julgar. Não coloca barreiras à sua capacidade de amar. E isso é muito bonito. Estávamos habituados ao Papa como o Chefe da Igreja, o que aponta caminhos e o que estabelece a ortodoxia. Com ele é diferente. Francisco é um amigo que se senta connosco, que se cruza connosco. Não fosse ele Papa, talvez não déssemos por ele: não é especialmente carismático, bom orador ou eloquente, especialmente brilhante do ponto de vista teológico ou doutrinário. 

Nas histórias que descorrem ao longo destes episódios, que se desenvolvem sucessivamente à volta do (1) "Amor", do (2) "Sonho, da (3) "Luta" e do (4) "Trabalho", há sobretudo a condição humana e a superação. 

São pessoas de mais de 70 anos que encarnam cada um desses temas, duma forma tocante e em certos casos comovente. O amor de Martin Scorcese pela sua mulher doente, ou de um pai muito pobre e viúvo na América do Sul pelos seus dois filhos adultos, cegos, cujo sonho maior é tocarem o mar com o seu corpo, uma senhora de mais de 80 anos, antiga atleta e que continua a saltar de pára-quedas em afirmação convicta do seu amor pela vida, mesmo depois de ter perdido o seu filho. Há muito aqui a coragem de quem assumindo a perda vai à luta: as mães que perderam os seus filhos em regimes ditatoriais e que sublimam as suas perdas reforçando a sua entrega. Ou a coragem da etíope que recusa um casamento de conveniência na sua aldeia e que aterra na cidade - e com uma enorme força interior, se vem a notabilizar como artista de prestígio internacional. Perpassa o sentimento do mistério da vida, da sua imprevisibilidade e ficamos enternecidos pelo Ser Humano, pela sua capacidade de nos batermos. São retratos de pessoas resilientes. Ressoa uma certa "fezada", um "tenir" como se diz em francês. Não se fala de fé: é mais a força que diz, "avancemos!" É o IF de Kipling. 

As pessoas são interessantes. Ou por outras, afinal todas poderiam sê-lo. Infelizmente nem todas são realmente porque há quem não viva a vida como uma descoberta. Há quem viva apenas numa dimensão rasteira, sem transcendência (e a transcendência pode neste caso ser apenas profundidade).

E a vida é Encontro. Dizia Francisco nessa série que os velhos precisam dos novos. Eu diria que precisamos todos uns dos outros. Eu precisei daquele jantar, como precisei do almoço. Mas a Maria ao telefonar e a convidar-me quis que eu fosse presença na vida dela. Somos todos presenças nas vidas uns dos outros.




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