O Américas


Gostava de fazer a experiência de contar a quantidade de palavras que digo em certos dias, pois às vezes contam-se pelos dedos...

Quando era pequeno, havia algo que me caracterizava que era o de ficar atento às conversas dos outros e de ouvir muito mais do que falar.  Não falo muito, não tenho grande facilidade para a chamada "small talk", a conversa fácil. Há pessoas que conseguem ficar horas a falar, talvez tenham boa memória para integrar factos e ideias e imaginação; mas muitas vezes falam e falam - e  pouco concretizam.

Não me parece que essa minha maneira de ser se trate dum defeito ou duma qualidade, diria antes que é uma característica pessoal, nem sequer se deve à minha educação, pois tenho um irmão que é bem diferente de mim nesse particular (e um outro que ainda acentua mais esta contenção na palavra).

Certos clientes meus gostam da minha economia de palavras, pois sou contido e direito ao assunto, sem grandes especulações ou floreados. Dizem que sou assertivo, que dou também ares de ser seguro no que digo. Há pessoas que são muito especulativas e que elaboram teorias complexas sobre os assuntos mais banais. Eu não me vejo nesse papel.

Cavaco Silva é uma personalidade que tem uma certa contenção também no uso da palavra e que ficou mais pelo "fazer". Não gosta das "conversas de caserna" e em funções executivas usualmente cortava a direito. Alguns acusavam-no de ter tiques de autoritarismo - em boa verdade, eu acho que ele sabia que há assuntos que se tem mesmo que decidir, mesmo que custe alguns descontentamentos. Essa característica dele é a de compensar com a acção aquilo que lhe falta em agilidade de discurso, uma certa dificuldade de se sentir integrado nessas, por assim, dizer "conversas de café" (embora aqui se denote algo de pejorativo). Diga-se que há uma certa solidão que é o efeito dessa característica e são normalmente pessoas que não gozam de grande popularidade. 

Mário Soares dizia que há dois tipos de liderança: as lideranças "angulosas" (a das arestas, que não temem o confronto) e as lideranças "redondas" (as que são muito cientes dos equilíbrios que não podem ameaçar e que utilizam normalmente a simpatia e o charme pessoal para avançar). Cavaco Silva era claramente do primeiro tipo; também o foi Sá Carneiro, que vivia debaixo de uma grande tensão nervosa. Mário Soares é claramente do segundo tipo: a "redonda", a que tem um grande sentido de oportunidade e dos equilíbrios. Veja-se por exemplo que Mário Soares nunca enfrentou a Igreja Católica porque sabia da sua importância e do seu poder.

Há uma qualidade que eu encontro na minha mãe que muito louvo, que é a sua capacidade de realização e de não deixar para amanhã o que pode fazer hoje - justamente esse "fazer", uma urgência em resolver. Eu também tenho em certa medida essa urgência e achei curioso que recentemente no Eneagrama me deu, em parte, a personalidade de tipo 8, pessoas que estimulam e provocam a acção, uma pulsão para a frente, para a tomada de decisão.

Ter atenção ao que se passa à nossa volta é importante, mas não podemos mudar a nossa natureza intrínseca. 

Em jovem, quando ia para a praia fazer bodyboard, havia amigos que me chamavam "o Américas" porque nunca estava nas ondas da primeira rebentação; ia sempre para as ondas maiores, as mais perto da América... Alguns dos meus amigos estavam mais na espuma da primeira primeira rebentação e apanhavam muitas ondas; eu ia para longe e apanhava muito menos ondas. Acho que era muito sintomático da minha personalidade, muito mais levado para a acção e para o difícil, do que para a agilidade...

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