Um dia estranho

                                           
Faz agora três anos creio, peguei em mim e fui. Fui para o fora, para os campos doirados. Meti-me num combóio, vi o desfilar das paisagens, fiz-me testemunha de conversas dum grupo, de coisas importantes, de como viver em conjunto, fazer planos. Encontrei-me ainda cara-a-cara com outras pessoas, pessoas generosas que se fizeram presença: Ema, professora universitária; José, ex-paraquedista. 

Percorri um espaço de paz nesse Convento da Flor da Rosa e aí soltei um pássaro que estava aprisionado numa torre, sem conseguir sair em liberdade. Com coragem, peguei-o com as minhas mãos e pu-lo a voar. Nas minhas mãos, que o prenderam para o soltar, colaram-se penas, algumas penas do aflito animal. 

Trovejou, choveu - o dia estava estranho. 

Foi boa a conversa com o José, apesar do cansaço para as despesas da mesma; falou-me dos seus amigos, de gente importante do direito e da economia. Falou-me das suas imperfeições, afinal das imperfeições dos homens, numa daquelas conversas em que dois estranhos, por mero acaso, se cruzaram frente-a-frente e conseguiram contar-se coisas que dificilmente alguém experimenta no seu dia-a-dia, na prosa cheia de coisas com que ocupamos os dias. 

Cheguei liberto; e liberto saí, já tarde, daquela livraria, de livros antigos e muitas estantes, depois de trepar pelas escadas sucessivas que o metro, do fundo dos seus túneis, nos faz percorrer até à superfície, escadas rolantes que se arrancaram à terra, por muito metal concertado, nesta cidade em que me habituei a sentir-me bem; perdi-me e encontrei-me na Sá da Costa, o nome dessa tal dos livros antigos e muitas estantes. Aí sentei-me com um livro aberto, deleitado por ter chegado a um porto de abrigo, o do livro que falava das coisas mais importantes, numa escrita simples e evocativa da infância do autor, das memórias que o ancoravam, daquelas mais antigas. Tinha um tesouro nas mãos e por 5 euros apenas, junto depois com uma garrafa de vinho e cigarrilhas, soube-me como há muito tempo não me conhecia apreciar a liberdade. Em casa, sem luzes para ofuscar se não as do candeeiro da rua e com a janela aberta sobre a mesma, terei conseguido, com sucesso, acabar comendo uma pera abacate. Não voltei a pensar no pássaro aflito, que deveria dormir já tranquilo nos ramos de alguma árvore.

 Quadro: Robert Gemmell Hutchison "The Wounded Sea Bird"

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