Elle vit aparaître le matin, elle se tut discretement

Tenho no meu quarto um quadro de Tom Sawyer e de Huckleberry Finn a correrem junto ao Mississipi. É uma imagem um tanto ou quanto infantil, mas que me serve para recordar que ser alegre é uma conquista, algo para me motivar a dar um salto da cama todos os dias, com entusiasmo ("entusiasmo" um substantivo em que Tom Sawyer, este "filho pródigo" era pródigo, passo o pleonasmo...) 

São pequenos gestos como este que podem fazer a diferença de como nos vamos sentindo diariamente: a forma como acordamos (disse-se que quando rabujamos, "acordámos para o lado esquerdo"...), ou o gesto de preparar a roupa do dia seguinte, por exemplo. Coisas que fazíamos quando éramos pequenos para preparar o dia seguinte do colégio. Aquele entusiasmo infantil que tínhamos e que é igual ao de Tom e Huck, ou aquele "trabalho invisível" de não deixar as coisas à toa e preparar o saco de ginástica para o jogo de futebol que se jogará no recreio do almoço, ou deitar-nos cedo para "acordarmos fresquinhos como uma alface" para o teste de história (como dizia a nossa tia Madalena), é algo que devemos permanentemente resgatar como pérolas escondidas... 

Entusiasmo hoje, no nosso dia-a-dia, pode ver-se também na maneira como prevemos os desafios profissionais que temos. De que maneira podemos fazer diferente e melhor?! Podemos usar a inteligência para planear e fazer as coisas bem pensadas. Podemos quase fazer disso um jogo, como agora em que penso, por exemplo, em como montar aqueles processos judiciais que tenho e em que gostava de fazer uma espécie de "mapa mental" construindo folhas e esquemas numa grande secretária que tenho. E depois tentar almoçar com um amigo meu, que me ajuda nestes processos, para bater bolas, descontraidamente e ficar com ele até às 4 horas na galheta!

Oferecer-nos oportunidades de prazer deveria ser um ritual, diria diário. Hoje Domingo é sempre um dia bom para pensarmos se não seria bom tentarmos estar com aquela pessoa ou com aquele grupo bem-disposto. Para fazermos aquelas coisas de que gostamos, como ter oportunidade para ler um livro (ando a ler um livro bom por sinal), ter um tempo livre para dar uma volta ou beber um copo ao fim com um amigo. Deve-se também organizar o prazer (o Pe. Mário Azevedo diz que o prazer deveria ser o 11.º Mandamento…, concordo!)

Há coisas que nos podem colocar em estado menos bem-disposto. Para mim, um deles é não dormir bem, não dormir o suficiente. Isto faz com que acorde já cansado, sem energia, o que  tem por efeito um estado de nervos à flor-da-pele. Na semana passada, vivi um pouco assim (uníssono com a bandeira a meia haste devido à Rainha de Inglaterra) e este fim-de-semana tentei reconciliar-me um pouco com o sono. Ainda não está completamente ganho, mas ainda tenho a noite de hoje e amanhã apenas uma reunião à tarde e posso estar mais à-vontade de manhã. Dormir pode ser um prazer. Além dum prazer, dormir é algo importantíssimo na regulação do nosso bem-estar, para estar de baterias bem carregadas, no máximo do nosso potencial.

Devemos alternar entre estados de vigília e estados de descanso. 

No meu quarto, por cima da minha cama tenho esta réplica duma "découpage" de Matisse. Conta uma das histórias das Mil e Uma Noites, a história de Sherazade. Parece que o sultão todas as noites escolhia uma das escravas do seu harém e que antes ao dia raiar a acabava por matar (estrangular...), para assim poder escolher uma nova no dia seguinte. Era assim diariamente, a mulher que estivera com o sultão não sobrevivia à noite - até que a escolhida foi Sherazade. Além de ser muito bonita, ela começou por contar ao sultão uma história que prendeu por completo a sua atenção e que não terminava. Assim, chegada a manhã, o sultão que queria saber o que vinha lá a seguir, sempre poupava Sherazade. 

Matisse, foi um génio que se reinventou até morrer e que quando já não conseguia mais pintar inventou esta nova técnica das colagens, de que esta gravura é um excelente exemplo. Nela gravou bem gravado: "Elle vit aparaître le matin, elle se tut discretement" ("ela viu a manhã a despontar e então calou-se discretamente"). A noite, tem poderes mágicos, sobretudo quando sonhamos sonhos bem sonhados, que queremos que continuem na noite seguinte!
                                          
    Henri Matisse, "Elle vit aparaître le matin, elle se tut discretement", c. 1950



                                              


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Uma rainha em peregrinação

Sábios

O que é uma Comunidade?