Torna-te aquilo que és
James Martin, sj, tem um livro que eu este fim-de-semana, enquanto fazia arrumações às minhas estantes (biblioteca soaria pedante?!), tenho estado a ler e que vem muito a propósito: "Torna-te aquilo que és" (Paulinas, 2009), uma simples, mas muito interpelante reflexão sobre o monge trapista Thomas Merton.
Pela minha janela, entra uma brisa fresca, uma luz simpática e o edificado amansardado desta Lisboa bonita de bom clima, enquanto toca a Smooth FM (excelente rádio!) e me sinto satisfeito por uma garrafa de rosé bem agradável.
Este tempo para mim é tão importante!
Ontem estive a passear com a minha querida sobrinha, a Nanã, por Lisboa - e olho agora para a fotografia dela ali na mesa, com um chapéu de palha e um grande sinal na cabeça que lhe dá personalidade (mais pequeno do que o do Gorbatchov, mas ainda assim uma marca única, que espero que nunca tire; Gorbatchov é a prova de que a consciência é possível. A Nanã é a prova de que o espírito de Deus sopra. Admiro Gorbatchov, amo a minha sobrinha, é uma pequena menina, pequenina).
Está um dia bonito, a música toca, volto a descobrir assim que gosto deste sossego, de estar com os meus pensamentos. Sopra a brisa, na telefonia toca a América, a boa América.
Thomas Merton: «Por que havemos nós de passar a nossa vida a lutar por ser alguma coisa que nunca queríamos ser, se porventura pudéssemos saber aquilo que realmente queremos? Por que havemos de desperdiçar o nosso tempo a fazer coisas que, se parássemos um pouco para pensar nelas, são precisamente o oposto daquilo para que fomos feitos?"
Onde está o tempo que eu me propus dedicar a ler e escrever? A passear - e a contemplar? O mundo quer sempre mais de nós, não é fácil, é na verdade muito difícil. Onde está o tempo que eu queria dedicar à escrita daquele livro?!
O urgente, o sempre "urgente", não deixa tempo ao é importante. Urgências que nos "roubam" o tempo. Ora o "importante" é aquilo que valoramos enquanto tal, no sossego das nossas almas, como neste Domingo, nesta tarde em Lisboa (como em Itapuã): normalmente, sempre algo maior que o nosso umbigo. E, ultimamente, tenho sentido que me têm chamado para "guerras" que não são minhas: sou advogado de muitos clientes estrangeiros. Tenho várias situações em que eles reclamam da contraparte reparações e indemnizações. De alguma forma, envolvo-me nas suas "dores", mas não posso deixar de pensar que há que pensar que a nossa cultura é diferente: nós portugueses não gostamos da confrontação directa, do conflito. Porque não passar um bom bocado?! Haverá sabedoria no português?! Terei que ir por aí, terei que entrar nessas "guerras"?
Gostava de ter mais tempo para pensar nisto: - será que estamos numa sociedade cada vez mais individualista, em que cada um procura sobretudo o seu benefício? - uma lógica sobretudo egoísta. Aquela ideia de vivermos no "jardim à beira mar plantado" em que procuramos viver bem, em paz, poderá estar ameaçada?
Do Brasil vem-nos a ideia daquela Praia de Itapuã, a música e os ritmos da canção de Vinicius de Moraes: «um mar que não tem tamanho/ E um arco-íris no ar/Depois na praça Caymmi/Sentir preguiça no corpo/E numa esteira de vime/Beber uma água de coco». Isto é português!
Sou advogado, mas não estou nada habituado em entrar nesta maneira de ser muito economicista e da contabilização mecanicista do "deve e haver". Eu por mim - talvez defeito da minha educação, gosto de procurar sentir-me bem e em paz, a beneficiar do dom das coisas.
Mas há quem procure se a infiltração do tecto foi escondida pelo "Senhor Carlos Manuel", que foi de volta para a terra depois de venda do apartamento em Lisboa para gozar os seus últimos anos de vida. Em paz. E que se calhar não terá mesmo paz.
Mas mais do que isso, manter a nossa individualidade própria é um processo difícil. Temos medo de perdermos o amor do outro e estão sempre a contar connosco para o apontar das espingardas. Teremos coragem para ver o lado da razão? Serei livre?! Recentemente o Pe. Domingos Freitas numa das suas extraordinárias homílias dizia que devemos sempre dar a "medalha de ouro" a Deus, o que nos leva a ter uma radicalidade de comportamento deveras especial. Isso obriga a um certo discernimento, a pararmos.
Ter razão às vezes é largar, abandonar, essa é que é essa...
Não cheguei a ir ver o retrato de Rembrandt que a Gulbenkian conseguiu ver emprestado do Museu Tyssen-Bornemiza de Madrid; na verdade gosto mais dos seus auto-retratos mais tardios, em que se representa de forma menos convencional. No entanto, é muitíssimo interessante esta busca pessoal que Rembrandt empreende ao longo da sua vida, em que se representa em mais de uma centena de quadros, desenhos e estudos.
Rembrandt é uma boa imagem de tudo o que venho dizendo. Ele era um exímio pintor e durante muitos anos retratou a florescente sociedade holandesa, na chamada «Golden Age» desta nação europeia. Retratou a sociedade, a burguesia e os comerciantes notáveis que saíram desse país de grandes empreendedores. Mas foi quando caiu em desgraça, quando acumulou dívidas e todos o rejeitaram, quando perdeu a sua casa, que a sua pintura acentua uma maior profundidade (uma maior religiosidade e densidade expressiva). Nessa altura ele vira-se todo para dentro, para o seu interior: deixa de se preocupar com as aparências, enfim; liberta-se dos constrangimentos da sociedade. Consegue dar esse passo, coisa que não é habitual os seres humanos conseguirem fazer: "tornarem-se aquilo que são", aquilo de que falava Thomas Merton. É a partir daí que a sua pintura se torna comovente e genial e também onde os seus retratos mostram a imagem dum velho, dum homem já sem vaidades e pretensões.
Diz Mário de Sá-Carneiro: "As minhas grandes saudades/São do que nunca enlacei./Ai, como eu tenho saudades/Dos sonhos que não sonhei!...)... Desceu-me n'alma o crepúsculo;/Eu fui alguém que passou,/Serei, mas já não me sou;/Não vivo, durmo o crepúsculo". («Dispersão», Mário de Sá-Carneiro, 1914). O que queres ser? Essa é uma das perguntas que nos devemos fazer quotidianamente.
Diz James Martin: "Deus quer que nós sejamos as pessoas para que fomos criadas: ser pura e simplesmente aquilo que somos, e, nesse estado, amar a Deus e deixarmo-nos amar por Ele. Trata-se na verdade de uma caminhada dupla: encontrar Deus significa deixarmos que Ele nos encontre. E encontrar o nosso verdadeiro eu significa permitir que Deus nos encontre e nos revele o nosso verdadeiro eu" (op. citada, págs. 36 e 37).
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