Momentos em que me perco

Contam histórias a meu respeito sobre a minha distracção. Eu diria antes “dis-traição”. A distração é uma espécie de auto-traição.

Uma viagem, um conjunto excelente de oportunidades para exercer esta minha peculiaridade. O bilhete de avião onde está? Em que bolsa? Em que bolso? Dentro do livro que levo na mão? Uma azáfama, a preocupação no rosto, um querer assegurar aos outros que está tudo bem… Um dia perdido em Roma a tratar do bilhete de volta que se perdera; um chegar ao aeroporto de Paris às 7h00 da manhã e ter-me esquecido do bilhete no quarto e ter que pagar muito mais por um novo bilhete; uma mudança de comboio de um TGV para um outro e, na pressa, uma mochila cheia de coisas a ficar para trás.

Esqueci-me de alguma coisa ao fazer a mala? O pijama é clássico. Mas o pior é a volta: há sempre umas cuecas sujas que ficam pelo caminho. Já por várias vezes amigos meus me disseram esqueceste-te cá de umas “coisas”. Uma vez foi uma amiga minha que, num jantar me disse isso e depois foi lá buscar as minhas cuecas esquecidas à frente de toda a gente (o que é que os outros pensaram? Tinha sido num acampamento a cuidar de crianças, não pensem noutras coisas, por amor de Deus!).

No ano passado fui ao Norte de Inglaterra a casa da Gisela e do Jack e acho que me esqueci lá também dumas cuecas (ela pelo menos empregou essa forma de “esqueceste-te cá de umas coisas”, mas depois, perguntada, não me soube dizer o quê…)

Miúdo colegial. Camisolas, livros, havia todos os dias alguma coisa que se perdia.

E o carro? Numa mistura de uma certa preguiça e falta de vontade, associada a um certo optimismo/fé, não raras foram as vezes em que o ponteiro da gasolina já não se mexia mais - e eu esperava pela próxima bomba. E por vezes o carro não chegava lá…

Duas vezes me enganei no combustível: uma delas ía para a Beira para um casamento e levava duas amigas minhas; noutra, estava no carro da minha mãe…

Chegar a tempo a um casamento: tarefa impossível. Casamento do Martim: falta de gasolina ao sair do Monte Velho. Noutro casamento, o do João e da Matilde, a caminho de Évora, o meu jeep que já tinha a luz do aquecimento ligada há muito deu o berro – andar meia hora na auto-estrada, de fato, ir à bomba, esperar por um reboque, por um táxi e chegar ao casamento 1h30/2h depois da hora marcada!

Choques. Um para apanhar uma coisa que caíra do banco do lugar do morto. Uma entrada menos cuidadosa numa garagem, uma curva menos atenta, uma ultrapassagem mais habilidosa… tenho para todos os gostos!

Facilitismo? Sim claramente.

Uma chave do meu carro que deixo no banco do táxi, estava no Algarve e ía para Lisboa de comboio e o meu carro esperava por mim na estação. Para resolver a questão, acabei por conhecer os taxistas de Faro, tive que me desenrrascar – e há sempre alguém que me safa…

Mas nisto tudo, é impossível não me cairem umas gotas de suor pela cara. É por isso que gostava que tratassem da minha vida: ter um chauffer que me tratasse do carro e das minhas deslocações, uma secretária que me organizasse o tempo, uma empregada em casa para que nada faltasse. Tenho já uma assistente – que me vai resolvendo os problemas de contabilidade - e uma excelente empregada em casa. Falta-me sobretudo ainda o chauffer. Mas hei-de chegar lá.

Como poderia ser agarrado às coisas se elas passam pelas minhas mãos e delas escorregam?! Exerço um certa desapego franciscano - não por opção, mas por virtude das circunstâncias...

O meu pai um dia deu-me na Serra Nevada uma nota de 10.000 pesetas (pareciam-me mesmo só 1.000 pesetas...) para comprar uma sandes e uma bebida para o almoço (quem é que dá também 10.000 pesetas assim?!) e a nota evaporou-se da minha mão… “Oups! Desculpe pai, também, por amor de Deus, que importa o dinheiro? …”

Acho que não sei lidar ainda muito bem com estes momentos de crise. Fico ainda muito nervoso. Não consigo nunca mentir. Sei que os outros me vão dizer: "É sempre a mesma coisa!"

Ainda me sinto traído pela minha distracção.

Mas a ideia de ser distraído é uma ideia engraçada e quando tiver o chauffer e uma secretária executiva, vou deixar de me importar com o que os outros pensam e dedicar-me com grande paixão à arte de me deixar perder, mas perder mesmo completamente!

Comentários

Monserrate disse…
Como foi crescendo essa distração?

Porque será que há almas mais distraídas?

Por cá “obrigam-me” a ter mais foco… a “crescer” … tenho feito um excelente trabalho… mas como é bom sentir-me por inteiro… sentir que nada se perdeu. Quando falho o “exercício” já não sofro, também já não me justifico… aprendi a pedir desculpa.

Gosto da ideia de um dia “(…) deixar de me importar com o que os outros pensam e dedicar-me com grande paixão à arte de me deixar perder, mas perder mesmo completamente!”

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