A Burocracia Criativa

Decompondo a expressão "burocracia criativa" em cada um dos seus elementos constituintes, temos duas coisas dificilmente conciliáveis... ou talvez não! Penso que o taoismo nos dá algumas chaves de leitura nesta questão: o "Yin" e "Yang" são conceitos que expõem a dualidade de tudo que existe no universo. ”Descrevem as duas forças fundamentais opostas e complementares que se encontram em todas as coisas: o yin é o princípio feminino, noite, Lua, a passividade, absorção. O yang é o princípio masculino, Sol, dia, a luz e actividade. Segundo essa ideia, cada ser, objecto ou pensamento possui um complemento do qual depende para a sua existência. Esse complemento existe dentro de si. Assim, se deduz que nada existe no estado puro: nem na actividade absoluta, nem na passividade absoluta, mas sim em transformação contínua” (Wikipedia).

A criatividade não é feita sem memória. A memória precisa também da criatividade e há estudos que demonstram que a criatividade aumenta o desempenho mental, nomeadamente a memória. A parte esquerda do cérebro precisa da parte direita. E vice-versa. Nada é linear e a criatividade não provém apenas diria "de olhar para belas paisagens". Muitas vezes é olhando para feias paisagens que ela surge e, como ensina Françoise Dolto, de muita frustração. Quem tem a vida facilitada, não desenvolve a criatividade que lhe permite escapar-se de situações difíceis. A chave está em perceber em como as duas metades da "laranja" podem desenvolver-se sem dar cabo da outra. Como poderão elas desenvolver-se? Dar fruto?

Penso que devemos ir buscar sempre no propósito, na ética.

Burocrata para quê? - será para servir melhor? Ou será por "the sake of bureaucracy"? Não, não pode ser.

Será que sendo criativo se poderá servir melhor? Que exemplos haverá de criatividade aplicada à burocracia? A criatividade é desde logo uma metodologia de olhar "fora da caixa". De outro ângulo. Dum ângulo sobre o qual não temos o hábito de olhar. É sair de lugares comuns. É mais do que claro que uma forma cooperativa de trabalhar permite-nos descentrar-nos. Se pensarmos na forma muito compartimentada duma Administração Pública antiga trabalhar, veremos que certos problemas que poderiam ser conversados dentro duma equipa, apenas recebem parte da capacidade dela, pois são apenas decididos por uma pessoa, sem a ajuda dos demais. De forma pouco criativa, já se vê. O mesmo se passa com haver grande imobilismo dentro dum organismo, cada pessoa cria os seus hábitos, os seus vícios e suas formas de ler o mundo. Há um fechamento.

Sabemos que a competência leva a servir melhor. Dizia-nos o falecido neurocirurgião Lobo Antunes que o principal princípio da ética era a competência, sem dúvida, mas quem serve tem que ter outro valor sempre presente: a pessoa que serve, é isso que dá sentido à competência. E a pessoa que se serve vê sempre o mundo por outro prisma. E para sabermos comunicar temos que estar sempre a tentar ver pelos olhos dessa pessoa. Aí entra também a criatividade, porque é fácil convivermos em silos, com aqueles que são iguais a nós. O mais difícil é perceber como é que um reformado se sente quando tem que fazer o login da Segurança Social e se esqueceu da sua senha de acesso e não sabe o que fazer; como atender uma pessoa que se sente irritada por receber mais uma multa de trânsito para pagar ou que está há uma hora e meia numa fila para entregar um papel. 

Porque como escreveu António Gedeão:

Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandescente.
Inútil seguir vizinhos,
que ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.

Será que conseguimos pôr gentilmente os óculos uns dos outros?!

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