Conseguirá o chapéu-de-chuva sobreviver ao mundo moderno?!

Lembro-me de passear pelas ruas de Lisboa apoiando o movimento no meu chapéu-de-chuva. Sempre gostei deste gesto, diríamos hoje pouco inclusivo, um tanto ou quanto identificado com alguém de privilégio. Um sinal exterior de privilégio. E hoje os sinais de distinção escondem-se porque ninguém quer ser tido por ser "BCBG". Além disso, os hábitos estão infectados pelo que se deve ser: moderno. Pode andar-se de calças rotas na rua e com headphones e isso passa mais pelo que está correcto, do que uma pessoa a passear-se com chapéu-de-chuva, arremetendo-o para cima e para baixo, ao ritmo da sua passada. Isso é presunçoso. E são poucos os que o fazem.
Quando andava num colégio e todos os dias envergava a farda, por vezes caminhava por Lisboa, nomeadamente quando estudei inglês no Cambridge Institute. Gostava muito daqueles passeios pelos Restauradores. Mas aí tinha 16 ou 17 anos. Vivia num mundo à parte. E passeava-me de chapéu-de-chuva para a frente e para trás.
O chapéu-de-chuva é além do relógio o adereço de que mais gosto. Quando o tenho. Normalmente por poucos dias porque facilmente o perco. Daqueles compridos - os de que mais gosto, porque por um lado é muito bonito (um cabo dum chapéu de madeira é algo especial), é simpático, agradável andar na rua com ele (sobretudo quando não chove).

Tenho dificuldade em saber quando devo usá-lo. Muitas vezes, quando não chove, levo-o. E pode fazer justamente aquilo de que mais gosto nele: serve de bengala.

Quando chove - e o tenho, dou ares de pessoa organizada e previdente. O que é sempre algo de que gosto deixar marca. Mas normalmente esqueço-me dele em algum lado. E esses dias em que chove e tenho um à mão são pois raríssimos. É curioso porque o "umbrella" é dos exemplos mais notáveis da imaginação humana ou, se se quiser, da capacidade de adaptação do ser humano. E é impressionante como ainda andamos de chapéu-de-chuva, neste tempo de gadgets: inicialmente ele servia para proteger do sol. Era por isso uma sombrinha. Dava sombra. Mas consta que a Rainha D. Catarina de Bragança, além de introduzir o chá no Reino Unido, é também autora moral da conversão do chapéu-de-sol em chapéu-de-chuva. Realmente um chapéu em Inglaterra é muito mais útil para a chuva do que para o sol! E hoje todos, mesmo em Portugal não nos importamos com apanhar sol. Mas chuva na tola, isso é que não!
Num dia de chuva é interessante, mas começamos a ver não sei quantos vendedores orientais a esticarem-nos chapéus-de-chuva para acudir à nossa imprevidência, ou surpresa, e não sabermos como nos safarmos dos pingos-da-chuva e termos pressa de chegarmos aonde devemos estar dentro de 5 minutos! Estes chapéus naturalmente que não têm qualquer interesse. Usam-se duas vezes e depois esquecemo-nos no táxi, no restaurante ou em casa de algum amigo. O chapéu-de-chuva é invariavelmente vítima da nossa distracção. Somos muito pouco fiéis a um chapéu-de-chuva. Trocamos muitas vezes, tantas quanta a nossa aflição quando de repente somos surpreendidos por uma chuva mais intensa.
Certo dia, era eu militar e chego ao quartel todo fardado, de chapéu-de-chuva. "Então o Senhor Aspirante não sabe que chuva civil não molha militar?!" Esta frase condensa uma enorme verdade: enquanto o espírito inventivo do ser humano foi criando enúmeras formas de aproveitar a utilidade de um objecto complexo como o chapéu-de-chuva, logo a sociedade, no seu afã regulador teve que limitar essa inventividade e restringi-la. D. Catarina com a legitimidade de rainha - tal qual legisladora leva o chapéu. E transforma-o em algo para que não era inicialmente feito.
Gene Kelly dança com ele "on the rain"! E encanta-nos!
Mary Poppins voa com chapéus-de-chuva!
Ele é um objecto indiscutivelmente muito simpático. Segurar o chapéu a uma Senhora é dos gestos de maior boa educação. É protegê-la debaixo do seu mundo, onde não chove. É o homem enquanto "provider", "protector".
Mas logo os amantes do cinzento disseram: "fazer do chapéu-de-chuva bengala é pedantismo"; "Militar não usa chapéu-de-chuva".
Temos tão pouco respeito pelo chapéu-de-chuva e por o que ele pode fazer por nós! Já houve tempos em que ele até servia para os Senhores decentes travarem-se de razões no Chiado! E ainda é dos melhores objectos para chamar um táxi... e já se inventaram novas utilidades como guiar grupos de turistas pela cidade...






Comentários

Monserrate disse…
Gosto deste invocar do chapéu de chuva, deste seu lado respeitoso, cuidado e invulgar…
Mas apesar de ter vários, num belo pote à entrada de casa, não consigo conjugar este elemento na minha vida… nem nos dias de grandes tempestades. Tento ser-lhe fiel e dar-lhe um bonito e desejado lugar… mas acaba sempre no chão do carro ou no porta bagagem, perdido meses a fio sem qualquer serventia.

Gosto da ideia de passear a dois debaixo de um guarda chuva, talvez o tenha feito algumas vezes, mas mesmo ali terá de haver um acertar de passo, de ritmo, um reajustar de espaço e isso tira-me alguma liberdade; sinto-me bem, mas contida… e rapidamente sou do grupo que anda de guarda chuva e que mesmo assim se molha.

Lembro-me de quando ia para a faculdade e estava a chover; uma amiga saía do autocarro e abria, sempre, o chapéu de chuva onde íamos cerca meio minuto… e rapidamente eu começava a correr em direção à porta. Ela grita “tens aqui um guarda chuva?!” eu ria-me e corria!

E hoje em tudo o que transporto, no dia a dia, ele não é uma escolha, nunca foi, talvez um dia poderá vir a ser… por enquanto fica guardado no pote da entrada, para quem o quise usar…

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