Para não matarmos a alma
ALGUNS DICIONÁRIOS COLOCAM COMO
SINÓNIMOS DE PRODUZIR OS VERBOS GERAR E CRIAR, O QUE É UM EQUÍVOCO. NÃO SE DIZ
“PRODUZIR UM FILHO”, MAS SIM GERAR, POIS UM FILHO É FRUTO DO AMOR
O verbo produzir, que se tornou
nas nossas sociedades um parâmetro obrigatório de avaliação da atividade
humana, é, no fundo, um verbo parcial e pobre para descrever aquilo de que se
pretende avizinhar. Produção, produtividade, produtivo, produto podem ser
termos úteis para a elaboração estatística ou para a composição do arsenal de
gráficos e grelhas com que se tenta capturar a morfologia da vida, mas não
tocam, nem de longe, a vida no seu âmago. Há nessas palavras — na verdade, mais
apropriadas para a máquina do que para a pessoa —, uma deliberada supressão da
complexidade da nossa experiência sobre este mundo, um cinzento camuflado de
neutralidade face àquilo que a vida é. Por isso, que esse vocabulário seja hoje
triunfante, e sonambulamente disseminado como modelo de compreensão do real,
diz muito sobre a redução de sentido que aceitamos viver. Recordo o que
escreveu a filósofa Simone Weil, partindo da sua experiência como operária numa
fábrica, onde sentiu na pele o que significa ver-se reduzido a peça anónima da
cadeia de produção: “Vi a consciência da minha dignidade e o respeito por mim
mesma serem sistematicamente estilhaçados aos golpes de uma construção brutal e
quotidiana. Custa-me confessá-lo, mas para meter-se diante de uma máquina, é
necessário matar a própria alma oito horas por dia.” Seguramente, não se trata
apenas de um caso singular, mas de um sintoma epocal. A aceleração extrema da
vida e a sua desumanização, o crescimento de fenómenos como a industrialização,
a computadorização, a conceção global do mundo como mercado (e não mais do que
isso), conduziram-nos a este estranho estatuto de vivos-mortos, de gente que
está viva mas amputada na sua humanidade.
(…)
Alguns dicionários colocam como
sinónimos de produzir os verbos gerar e criar, o que é um equívoco. Não se diz
“produzir um filho”, mas sim gerar, pois um filho é fruto do amor. Não se
produz um abraço, nem a profusão de luz de um sorriso, nem um silêncio, nem a
escrita sem letras de um pranto, nem uma amizade, nem o cuidado solidário, nem
aquela arquitetura íntima de relações que é o miolo de uma casa; não se produz
a indagação sem fim e o espanto sobre o qual a vida constantemente nos debruça
(…).
José Tolentino de Mendonça, Extractos
de “O Expresso”, 24.12.2020 pag. 166
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