Sobre a entrevista de João Vieira de Almeida

1. Um advogado português de uma ilustre família, João Vieira de Almeida, "chegou-se à frente" para falar de depressão. A entrevista foi dada ao Observador.

Embora tenha achado um acto de coragem, acho que foi pena que, em cerca de quase uma hora de entrevista, não se tenha falado em certas questões que seriam importantes, tendo-se  essencialmente centrado a conversa na experiência pessoal do sofrimento vivido e no testemunho, dado na primeira pessoa, que embora impressivo, não merecia, na minha opinião, tão extensa entrevista. Entendamo-nos bem: a depressão é um assunto sério, é uma doença muitas vezes ocultada, há uma vergonha em a reconhecer. Por isso, não pode ficar qualquer dúvida que quem dela fala publicamente, expondo-se, está fortemente a contribuir para que cada vez mais se fale dela e se assuma como uma realidade. Já isso é um serviço de inegável valia.

2. Acharia interessante que se tivesse falado e aproveitado a oportunidade para, por exemplo, questionar se não poderão os profissionais que praticam a advocacia estar especialmente expostos a certos riscos que os tornam especialmente vulneráveis a esta doença do foro psíquico: o facto de lidarem muitas vezes com situações de conflito e/ou com problemas variados que causam altos níveis de ansiedade nos clientes e que, por arraste, os podem também de alguma forma contaminar. É uma profissão cujos resultados não são bem previsíveis, dependendo de terceiros e de factos por vezes aleatórios: imagine-se um caso judicial que terá que ser julgado e que, embora se possa considerar ter-se feito um bom trabalho, depende sempre duma decisão que, em certa medida, é imprevisível.

3. Por outro lado, a forma como a prática profissional se foi desenvolvendo nas nossas sociedades, aponta para altos níveis de exigência para resultados e cargas horárias de trabalho bastante intensas - e, aqui, certamente que as sociedades como aquela de João Vieira de Almeida - bem sabem de que falo. Ora, esta situação pode fazer perigar o equilíbrio de vida dos profissionais , em detrimento da sua saúde. É frequente aliás que o trabalho de "secretária" seja muito grande, porque também sucede que os  profissionais da advocacia se foram especializando na produção de matéria jurídica cada vez mais elaborada e mais densa, em operações que acabam até por se afastar da realidade, com a criação de mundos "paralelos", para além da necessidade de regulação das próprias relações sociais sobre as quais deveriam incidir e secundar. Embora vivamos genericamente naquela que apelidam "sociedade de cansaço", há indubitavelmente características  na própria forma como vivemos as nossas profissões que não estamos alheios a determinados maus-hábitos e a profissão da advocacia é certamente uma das mais ilustrativas disso. 

4. Vale a pena pensar de que forma a profissão se pode melhor ajustar ao mundo em que vivemos, procurando encontrar o seu lugar próprio e a sua justificação. Sendo uma profissão importante na regulação das relações sociais e na potenciação dos direitos dos cidadãos, a advocacia carece de profissionais que se encontrem bem de saúde, para assim poderem exercer adequadamente o seu papel. 

Aliás, essa deveria ser quase uma regra deontológica da profissão: que cada um cuide da sua saúde e bem-estar para poder servir da melhor maneira possível. É isso que por exemplo refere o documento muito interessante que a correspondente à Ordem dos Advogados nos EUA refere no seu estudo "The Path to Lawyer Well-Being: Pratical Recommendations for Positive Change" (National Task Force on Lawyer Well-Being, Creating a Movement to improve Well-being in the Legal Profession, Agosto de 2017): 

"Para ser-se bom advogado, devemos ser advogados saudáveis". 

E continua: 

"Infelizmente, a nossa profissão está a ficar para trás no que respeita ao bem-estar dos seus profissionais... estudos apontam que demasiados advogados e alunos de direito experienciam stress crónico e altos níveis de depressão e de uso de substâncias. Estes dados são incompatíveis com uma profissão legal sustentável e levantam questões problemáticas sobre as competências básicas dos advogados. Estes estudos sugerem que o actual estado de saúde dos advogados não é consentânea com uma profissão dedicada ao serviços dos clientes e em que recaia um capital de confiança pública". 

As recomendações que este estudo apresenta desenvolvem-se em 5 dimensões: (1) identificar os actores e o papel de cada um em reduzir os níveis de toxicidade na profissão; (2) eliminar o estigma associado com a procura de ajuda psicológica; (3) enfatizar que o bem-estar é indispensável na equação da competência do exercício da advocacia; (4) formar os advogados e os estudantes de direito em hábitos de bem-estar e (5) tomar passos pequenos e incrementais para mudar a forma como a profissão é regulada e instigar melhores níveis de bem-estar na profissão.

5. Estamos certamente em terreno difícil e não há receitas fáceis, mas há que fazer escolhas: trabalharmos por privilegiar sobretudo a qualidade e não tanto a quantidade, saber dizer "não" quando não temos capacidade para abarcar mais, dar lugar a planear também o nosso descanso, dar lugar a dormir bem, termos uma vida social de apoio, entre outras coisas, tudo isso pode contribuir para que sejamos advogados mais saudáveis, mais felizes... e se calhar também mais competentes. 

6. Não sei bem se a Ordem de Advogados portuguesa está atenta a esta situação, mas o facto é que recentemente lançou um inquérito sobre burnout. Seria interessante saber os resultados. Mas há uma reflexão estrutural mais funda que se poderia desenvolver - promovida pela própria Ordem dos Advogados e com medidas concretas nos serviços que poderia prestar aos advogados, seus membros. Lembro-me de 3: 

Um serviço de apoio psicológico, programas de coaching e mentoring. Há que repensar muitas coisas na reorganização da profissão. Creio que determinados regimes como o do patronato precisam de ser revistos, pois estão desadequados às exigências e desafios da prática profissional dos nossos dias; e depois o coaching e o mentoring, que são hoje ferramentas que bem poderiam representar uma adaptação desse modelo, pois temos que ser francos: os patronos não têm hoje tempo para os seus advogados estagiários... e podermos ter a regulação que serviços como o coaching ou a orientação que o mentoring pode dar, são de grande valia.

7. É claro que não podemos generalizar e cada situação de depressão tem as suas causas e explicações, mas não podemos deixar de, enquanto advogados, pensar nos riscos que a nossa profissão nos nossos dias nos coloca para a ocorrência deste tipo de problemas. João Vieira de Almeida foi corajoso e, dada a sua notoriedade de advogado, lançou também, indirectamente embora, o debate destas questões na nossa profissão.  



   Gravura de Simon Schneiderman



     


 

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