Mensagens

A mostrar mensagens de 2020

Para não matarmos a alma

Imagem
ALGUNS DICIONÁRIOS COLOCAM COMO SINÓNIMOS DE PRODUZIR OS VERBOS GERAR E CRIAR, O QUE É UM EQUÍVOCO. NÃO SE DIZ “PRODUZIR UM FILHO”, MAS SIM GERAR, POIS UM FILHO É FRUTO DO AMOR O verbo produzir, que se tornou nas nossas sociedades um parâmetro obrigatório de avaliação da atividade humana, é, no fundo, um verbo parcial e pobre para descrever aquilo de que se pretende avizinhar. Produção, produtividade, produtivo, produto podem ser termos úteis para a elaboração estatística ou para a composição do arsenal de gráficos e grelhas com que se tenta capturar a morfologia da vida, mas não tocam, nem de longe, a vida no seu âmago. Há nessas palavras — na verdade, mais apropriadas para a máquina do que para a pessoa —, uma deliberada supressão da complexidade da nossa experiência sobre este mundo, um cinzento camuflado de neutralidade face àquilo que a vida é. Por isso, que esse vocabulário seja hoje triunfante, e sonambulamente disseminado como modelo de compreensão do real, diz muito sobre a

Avaliação ao final dum ano

Imagem
Agora que chegamos ao fim deste ano, seria bom fazermos uma espécie de avaliação donde estamos e para onde pretendemos ir. Este texto poderá ser útil para tal exercício: Cada um de nós tem uma imagem, mesmo que vaga, daquilo que pretende fazer na vida: se está longe do objectivo, o indivíduo torna-se triste ou resignado; se o atinge pelo menos em parte,  experimenta um sentimento de felicidade e satisfação. Para a maior parte de pessoas na terra, o objectivo fundamental da vida é sobreviver, deixar crianças que sobrevivam e, se possível, fazê-lo com um certo conforto e um mínimo de dignidade.  Logo que os problemas de sobrevivência são resolvidos, as pessoas não se contentam mais com esse nível de vida e novas necessidades e novos desejos surgem.  Com a abundância e dinheiro, a escalada de expectativas conduz a novas exigências, mais conforto e mais riqueza, de maneira que o nível de bem-estar desejado fica longe. Cyrus, o imperador da Pérsia (séc. VI A.C.), tinha necessidade de dez mi

Na simplicidade, a beleza

Imagem
Uma das características que quem conhecia Eduardo Lourenço nele apreciava era a simplicidade. Num  programa que passou recentemente na televisão, um autarca que falava da terra de Eduardo Lourenço dizia que essa qualidade era própria dos grandes homens. A simplicidade é rara. Porque ela tem que ver com deixarmos o supérfluo e nos centrarmos no essencial. Um amigo meu, o Gonçalo Martins Barata, há cerca de 10 dias  fez em frente da Sé de Elvas uma brilhante dissertação sobre os estilos arquitectónicos, desde o Românico até ao Romantismo. São verdadeiramente diversos os estilos que na história e, na nossa em especial, foram tendo as igrejas. Também há tempos conversava com um amigo jesuíta, arquitecto e especialista em litúrgia, sobre os espaços das igrejas, e ele me dizia que, tão importante quanto a parte espiritual, era o sentido de comunidade que o espaço pode permitir, dando o exemplo, da Capela do Rato. Relembrava-me também o Gonçalo uma história de Filipe II de Espanha, que

Alentejo, vasto espaço, vasto tempo (a road trip)

Imagem
  “ Além Tejo…  além Tejo ”,  sussurra o vento…  enquanto ouvimos António Chainho & the London Philarmonic Orchestra   (e ste é um roteiro pelos 5 sentidos) Lavados os olhos no largo estuário como que a marcar a transição e a preparar a vista para um espaço diferente que aí vem, o carro avança em rumo certo, vencendo o vento que nos sussurra “ Além Tejo, Além Tejo… ” Sem complacências, abandonamos a cidade de Lisboa, o nosso ponto de partida, rumo às extensas planícies do sul, onde o tempo é um outro.  O carro avança e passada a nua Serra da Arrábida e quase com a ponta da mão recolhendo uns cachos periquita, é numa comprida descida - não muito longe de Vendas Novas, que se nos enchem os pulmões com a primeira grande golfada de ar do Alentejo. A promessa sussurrada torna-se então numa feliz realidade: o relevo arredondado de pequenos montes a perder de vista, bem enriquecidos pelo despontar de viçosas árvores, algumas delas em presença solitária, mas garbosa. O Alentejo, a m

Batalhas

Imagem
Esta semana, enquanto parece que fomos derrotados novamente em Alcácer Quibir, estive a rever a estratégia de Aljubarrota e é um daqueles episódios em que realmente contou a estratégia montada (recomendo vivamente ir-se ao Centro Interpretativo da Batalha de Aljubarrota, muito bem feito e pedagógico).  As tropas portuguesas, naquele dia de 14 de Agosto eram várias vezes inferiores em dimensão às tropas castelhanas. D. Nuno Álvares Pereira tinha batido o pé no conselho: devíamos dar pleito aos espanhóis; o  Rei não concordou com ele e o Condestável sai sozinho, pelo seu pé. A alternativa a uma refrega agora seria um avanço de D. Juan sobre Lisboa, que nós não iríamos conseguir aguentar: era essa a tese de D. Nuno. Assim, seria melhor uma antecipação. Um ou dois dias depois, D. João I revê a sua posição e junta-se a ele. D. Nuno Álvares Pereira muda pelo menos uma vez de palco de operações, até encontrar aquele que melhor servia os seus intentos: apanhar os espanhóis sem que eles tivesse

Esta enorme curiosidade que faz atravessar o rio

Imagem
Dizia de si próprio George Steiner que em novo fazia listas de coisas que queria saber. Também Edgar Morin, em entrevista recente a uma jornalista portuguesa dizia que o que o mantém vivo (já passou os 90 anos) é uma enorme curiosidade e que, por causa dela, interessa-se por tudo, até pelo futebol... É capaz até de ensaiar que o futebol tem que ver com o pensamento complexo, veja-se o que ele diz: “Parece estranho, mas é o que discretamente propõe o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, autor de mais de 30 livros, no texto Epistemologia da Complexidade, publicado em Paradigmas, cultura e subjectividade (1996). Explica-se: visto em simplicidade, o futebol é só um jogo em que cada equipa procura marcar golos ao adversário; visto em complexidade, torna-se uma partida de estratégias, em cada equipa constrói um jogo para desconstruir o jogo adversário. “O futebol que vemos todas as semanas nos estádios é uma demonstração de complexidade”, escreve Morin, acrescentando que “com no

Aviso à navegação

Imagem
Há momentos em que tudo pode mudar e se não formos prudentes e avisados, podemos cometer grandes erros. Decidir apressadamente ou de "cabeça quente" pode ser um perigo. Em diversas conversas que tenho tido com alguns amigos, temos reflectido na importância que é haver "massa crítica" e capacidade de análise, que o nosso País, a nossa cidade de Lisboa, por exemplo, sejam governados com inteligência e ponderação. Nestes últimos meses, devido à pandemia, tudo está a mudar e temos alguma dificuldade em nos situar.  Não podemos simplesmente "surfar" as ondas quando elas nos são favoráveis e, depois, deixar-nos a lamentar-nos nos períodos de escassez, num mar de águas paradas, onde falta o pão. É muito importante pensarmos a médio e longo prazo: onde queremos chegar como País? Onde queremos que a nossa cidade de Lisboa chegue daqui a uns anos? Tenho algum receio que nesta pandemia estejamos a seguir as respostas erradas.  Que avaliação económica por exemplo foi

Ensaio sobre o Tempo

Imagem

Diogo Freitas do Amaral - "mais 35 anos de Democracia (Memórias Políticas III)"

Imagem
Das minhas primeiras memórias sobre a política conta-se o daquelas eleições presidenciais de 1986, em que o País viveu em suspenso e com uma enorme vibração, dividido entre Freitas do Amaral e Mário Soares.  Freitas do Amaral morreu recentemente, foi uma figura muito importante da nossa democracia. Vi-o há cerca de 3 anos nos anos do José Sarmento Matos, meu amigo também já desaparecido (um pouco antes de Freitas) e de quem era cunhado. No ano passado, em Outubro, o meu amigo Joaquim Mendia, que havia sido assistente do Freitas na montagem do curso de Direito do Urbanismo, ofereceu-me este livro, cujo título dá nome a esta entrada hoje no blog.  Freitas do Amaral escrevia magnificamente: uma escrita simples, clara e despretensiosa. Um homem de grande capacidade intelectual, um pedagogo. É por isso verdadeiramente um prazer ler estas memórias.  Há algo um tanto ou quanto desconcertante neste homem: é um homem que não criou seguidores,  dele não nascem facções. Isso ter-lhe-á pesado no s

Beleza e Contemplação

Imagem
Entre autómatos e mestres de nós próprios A aceleração temporal faz com que vivamos ao ritmo da comunicação e como esta cresceu muitíssimo, temos acesso a muita informação. Informação que temos dificuldade em digerir. Como diz Charles Landry, urbanista inglês que aborda o aumento exponencial da invasão sensorial nas nossas cidades ( in  “Paisagem Sensorial das Cidades”, Building Ideas, 2017) “ cada vez mais, a nossa primeira sensação (…) é a de excesso de informação, o que nos faz sentir que as coisas estão fora de controlo ”. Diz-nos ele que “ quer a publicidade quer os meios de comunicação procuram preencher com os mais estridentes tons e sons, os desejos de cada um. Há toda uma distração, perca de atenção, de concentração e de foco ”. A dispersão crónica em que muitas vezes vivemos tem consequências gravíssimas em termos de saúde mental. O mundo exterior envia-nos tantos dados contraditórios e todos lutam por ganharem na guerra da nossa atenção. Se não sabemos proteger-nos d