Evasão

Uma das coisas que torna alguns dos dias da minha vida profissional de advogado mais interessantes, é que tendo por necessidade passar os olhos por tantas palavras e tantas frases, por vezes me deparo com algo que abre portas à minha capacidade de me evadir do papel, ou melhor dito, do computador. Dizia Fernando Pessoa algo como que "todo o notário sonha em ser sultão", talvez seja isso que explica que nos apeteça dar uma gargalhada quando descobrimos que na mais prosaica situação encontramos algo insólito, que nos faz pensar que a realidade é muitíssimo mais rica do que poderíamos alguma vez sonhar. Que basta estarmos atentos.

Certo dia, cruzei-me com uma lei, publicada um mês antes da Revolução do 25 de Abril de 1974 e que se debruçava sobre recipientes sob pressão. O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 101/74, de 14 de Março, anunciava solenemente em bom português que: "(...) acresce que se torna necessário estabelecer um esquema de prevenção dos acidentes produzidos pelos recipientes sob pressão, cada vez mais frequentes e de efeitos mais destruidores". Tivesse o Governo menos preocupação tecnocrática em regular com eficácia as contingências das caldeiras e percebesse a "panela de pressão" em que a sociedade estava e ter-se-ia evitado um acidente, que como toda a explosão teve os seus efeitos destruidores...

Mas enfim, deixemos Março de 1974, que teve a sua importância na regulação dos tais recipientes sob pressão e pensemos noutros recipientes, que normalmente boiam, mas que podem também ir ao fundo. Refiro-me a navios. Ora, introduzo este novo dado porque um desses momentos a que me referia no início deste texto tem que ver precisamente com estar a analisar um regulamento administrativo, o Plano Director Municipal (PDM) de Oeiras e ter reparado em algo que me permitiu de facto evadir-me. E isso fascionou-me, fez-me pensar na história daquelas embarcações, que sucumbiram nas rochas e nos bancos de areia da barra do Tejo, tão perto do porto. A lista de naufrágios fala dos nomes desses navios, desde o séc. XVI naufragados perto do Forte de S. Julião da Barra ou do Bugio. Um dos mais estudados desses navios é o Nossa Senhora dos Mártires, naufragado em 1606, com pimenta das Índias: atravessou todo o grande Oceano Índico e o Atlântico, mas sucumbiu no rochedo, à entrada de Lisboa. A sua pimenta e os seus despojos espalharam-se até à praia de Carcavelos e é possível que ainda se encontrem nas suas areias algo que restou do mesmo. A mesma praia de Carcavelos onde tantas vezes fiz bodyboard e que jamais sonhara que por debaixo das suas ondas estivesse tanto mistério, memórias de viagens às longínquas Índias. Aliás são mais os navios da Carreira das Índias que se encontram nos fundos das águas do Estuário do Tejo e volta e meia nas notícias aparecem pescadores mergulhadores ou outros que se deparam com alguma descoberta. Crê-se que cerca de 15% dos navios que faziam essa carreira se perderam para o fundo das águas e nos bancos de areia depositados ficaram tantos testemunhos mudos desses trajectos. O nosso imaginário abre-se assim ao fascínio desse passado, aquele das histórias de infância de aventureiros, imaginários como um Indiana Jones, ou reais como um Jacques Costeau. Há uma dezena de anos, um desses aventureiros de carne e osso, inglês, dedicou-se a explorar na Costa de Omã no Oriente o mais antigo navio ocidental descoberto até hoje. Trata-se à partida do Esmeralda, integrado na 2.ª esquadra de Vasco da Gama à Índia (1503), um dos dois navios comandados pelos irmãos Sodré, que dão o nome ao muito lisboeta Cais do Sodré, mais conhecido como "Caixodré".

As letras do computador ganham vida quando imaginamos as histórias que se escondem por detrás do texto bem ordenado de um documento como o PDM de Oeiras. Deixamos então de ser “notários” para nos tornarmos “sultões”, como tão bem compreendera Pessoa.



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