Memórias de Tempo de Vésperas

Intitulo este post com o nome das memórias de Adriano Moreira.

Como hoje tive a proeza de acordar de vésperas e um dia ainda longo esperar por mim no virar da escuridão... e porque ontem ao deitar peguei no livro deste homem insigne.
O retrato que Adriano faz da sua infância e da situação de iletracia da grande maioria da população, é em tudo coincidente com a ideia que ultimamente me permitiram concluir os dados estatísticos sobre o dificuldade em superar um grande déficit cultural: em 1910, 75% da população é analfabeta e conta-se em algo que não chega a 8500 os estudantes inscritos no Ensino Secundário.
Penso, sinceramente, que nunca podemos deixar de considerar a expressão deste atraso cultural ao pensarmos no nosso País. E é interessante notar que muitos dos políticos que dirigiram os destinos pátrios, não deixaram de estar bem conscientes disso mesmo, a começar por Salazar. Creio que nas entrevistas, célebres, dadas a Christine Garnier, ele bem se lamenta de não ter conseguido fazer a reforma no Ensino que se impunha (mas não sei até que ponto não foi também a sua vontade velada deixar o País atrasado...). Guterres, na década de 90, vem eleger também a educação como a sua "Paixão".
Quando ontem argumentava numa reunião o porquê da indisciplina na escola, não podia deixar de ter presente considerações sociológicas que tenho certas para mim:
- uma sociedade rural que ao longo do séc. XX vai para a cidade;
- a perca de valores na cidade, um pouco até por rejeição daquilo que era considerado "atrasado", num sentimento que diria ser de vergonha;
- um País que viu o rendimento da população muito aumentado com a entrada na CEE e que se viu reconfortado por novas práticas, novos hábitos, um pouco vislumbrado pelo consumismo e pelo cartão de crédito.

Não posso deixar de pensar que a indisciplina que vemos na escola resulta da perca do sentido da autoridade e do respeito. Não gosto do "respeitinho". Mas gosto do respeito, que no latim quer dizer "coisa do peito" e pergunto se não houve aqui uma demissão dos adultos que se deixaram levar por uma propaganda que dizia que as crianças não devem ser educadas, que o respeito que se vê por exemplo nos romances de Júlio Dinis de reverência pelos mais velhos era uma coisa bacoca e fora de moda. Quanta falta de bom senso! Quantos doutorecos e doutorecas enganaram e enganam quem pouca iletracia tem, mas que tinha uma sapiência que não se aprende nos livros.

Quando penso em cultura, ou falta dela, penso numa educação da sensibilidade, numa capacidade de leitura e de acção sobre o mundo que nos rodeia. Literacia não é o mesmo de cultura. Mas a cultura precisa da literacia, para saber dialogar. Sabemos que são as culturas mais tecnologicamente avançadas que vencem as menos avançadas, mesmo que mais pobres em termos de vivências e valores. Mas a cultura é mais do que a literacia.

Pensava esta semana na "saloice" e "parolice" que se vive em muitas escolas. E isto dá para ver a fragilidade das nossas dinâmicas que sucumbem face a uma superficialidade reinante, em vez de darem lugar a práticas que fazem mais sentido e se encaixam numa história e tradição comuns. Exemplo: porque se comemora em certas escolas o Haloweeen, algo que nada tem que ver com a nossa cultura e que é uma importação do mundo anglo-saxónico? Só consigo explicar isso pelo tal "saloíce" e "parolice", que dão sempre lugar de honra e destaque ao que é estrangeiro e vem lá de fora. Segundo exemplo, esse extensível a todo o País: já se viu como hoje em dia se comemora o Carnaval? As meninas de Ovar a dançar, em pleno Inverno, como se tivessem em clima tropical?!

Penso que é tempo para viver de bem com as nossas regiões, para exaltar as nossas diferenças regionais, as diferenças entre Minho e Alentejo, Algarve e Ribatejo, etc. Para dar lugar à cultura que só está morta se nós a deixarmos morrer.

Passeando pela Inglaterra ou pela Áustria vemos que estes povos amam as suas tradições, amam o campo, sabem preservar o campo. E que têm gente que o sabe defender. Somos capazes de ser surpreendidos por gente muito educada a guiar um tractor...

Quando se vir que o campo é que é... tal como Eça de Queiroz nos descreve tão bem na "Cidade e as Serras", que o campo é depositário não apenas da natureza, da beleza das paisagens, da capacidade de criar uma verdadeira qualidade de vida, para os produtos alimentares de qualidade e para a boa culinária, inverteremos esta situação de "saloíce" e "parolice" culturais. E saberemos também reatar a nossa ligação comunitária, as nossas raízes, numa mundivivência mais rica e mais humana. Aí talvez cuidemos do nosso espaço, o amemos mais e não estejamos sempre a compará-lo com as grandes cidades.
Neste Verão, pelo Minho, vi o quão bem estava cuidada Braga, Ponte de Lima. Viana do Castelo é também uma cidade interessantíssima, com muita qualidade de vida. Se bem que seja ofensa chamar campo a essas cidades, há uma dimensão encantadora e fresca nestas cidades ou vilas minhotas. E temos o Gerês, este ano tão fustigado pelos incêndios, para nos lembrar que a serra está ali ao lado e faz parte integrante dessas "cidades" ainda e sempre tão humanas, mas que por muitos preterida a favor da grande cidade.

Um dia farei esse percurso, da cidade para o campo. Espero que não falte muito!

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