É aí que a nossa vida acontece...

E se o perto nos salvasse?! Entre o viajar para longe ou encontrar no perto, entre a quantidade e a qualidade, talvez não seja tão estúpido assim procurar no aqui e no agora. A escolha do perto e do possível. 

E a escolha pela qualidade é mesmo uma escolha, que obriga a prescindir. A optar por isto, por estar aqui sossegado, neste cantinho a ler, ao sol, em vez de ir ao supermercado, de ir comprar o jornal, de ir ao café, de fazer zapping na televisão.

A salvação estará do outro lado do mundo à nossa espera?! Só de forma ilusória. Lembro-me de alguém me dizer que "se não estás bem, não é do outro lado do mundo que irás encontrar o que te salva". 

O que não nos salva certamente é ficarmos fechados com o que temos, não olhar em profundidade e para além, não acreditarmos que tudo tem um mistério, que há uma história que se pode contar. A realidade pede-nos ouvidos atentos. E pede-nos também rituais. 

Quem acha que ficar sossegado é ficar fechado, muito se engana. Contemplar é o tempo suspenso. É a qualidade do tempo. É saber respirar calmamente. É tudo menos estar fechado. É sobretudo o tempo para abrir-nos ao eu profundo e à singeleza de cada coisa.

E o medo - esse grande inimigo - também nos destrói. Que medo é esse? É algo quase tópico, que tem que ver com a pele. É um sentimento vago que vem do cansaço, dos despojos que acumulamos tal como poeira que se acumula; vem do sentimento de impotência e da nossa cabeça que não para de botar sentenças. Por isso, para acabar com o medo, há que saber reprogramar-nos. É uma palavra feia essa de "reprogramação". Mas é a função do dormir e do esquecer. 

Quando acreditamos, quando vemos possibilidades, quando temos esperança, a vida abre-se-nos em potencialidade. 

Mas como acreditar? 

Se calhar está um pouco naquilo que dizia em cima: está nos rituais. Está um pouco na beleza das pequenas coisas. 

E está na vontade de ser feliz, de acordar de manhã e dar um salto da cama. Com energia. A atitude é um bom começo. Está no jogo - embora cada vez mais me surpreenda por não conseguir brincar... há quem diga que os adultos são crianças que desaprenderam a arte de brincar...

Ontem ia pelas bancas do Chiado, pelos alfarrabistas da rua da Anchieta. Tenho passado por lá aos sábados de manhã. Passei grande parte dia a ler um que comprei nesse meu passeio matinal, mas desisti: não está bem traduzido e não é interessante. Lembro-me que foi Vasco Graça Moura que disse que se o livro não é bom, deixa-o de lado. Não tens que o ler todo. E deu um exemplo: "se um ovo está estragado, vais comê-lo até ao fim?!"

Hoje de manhã estive a arrumar a minha biblioteca e encontrei alguns livros bons. Há ainda muitos livros que não li. E há muitos livros a que eu gosto de regressar.

Não sei bem o que será sabedoria, mas sabedoria parece-me que é também encontrar objectos e experiências onde, repetidamente, podemos ter momentos de gozo. É, assim, conhecer o que nos dá prazer, aquilo de que gostamos.  

Quando iniciamos um livro, podemos ter sorte ou podemos ter azar. É como começar uma conversa com alguém, com alguém que ainda não conhecemos... 

Há um entusiasmo sempre pela novidade dum livro acabado de comprar. Parece também que é a conversa com alguém que nos vai salvar. A novidade tem sempre um tónico, mas voltar a saborear o que temos perto de nós é uma arte. E talvez seja o mais importante. 

O exemplo melhor que encontro é o de saborear a experiência dum amigo: não andamos sempre à procura de novas pessoas para conhecer e, na vida, vamos aprendendo a estar de novo com os nossos amigos. Porque num amigo houve um percurso e há uma identificação; mas o amigo é também o outro, o diferente de nós e o laço que nos prende também nos alarga.

Não temos que gastar muito dinheiro para ter experiências boas. A experiência é aquilo que sabemos trazer para os momentos. Não temos que ir a São Petersburgo para ter uma boa experiência, nem trepar o Evereste. Por isso, às vezes, num encontro de amigos num restaurante simples, perto de casa, podemos ter uma experiência que nos anima para todo o dia.

Entre a escrita e a vida vai uma certa distância. Mas a escrita facilita a mediar a vida. Quando não escrevo sinto a falta de escrever. É também tópico em mim, como o medo.

Viver no quotidiano e não esperar o extraordinário, o tempo de férias para ser feliz; é muito difícil, mas será esse o desafio. Não digo por exemplo que uma viagem não nos faça bem. Faz sem dúvida. O que digo é que não devemos ligar o "piloto-automático" e não reparar no que nos acontece no dia-a-dia. É aí que a nossa vida acontece... e é aí que deveríamos ser felizes.

 







 

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