“Os Noivos”, de Manzoni

Um casal de noivos (I promessi sposi), ela Lúcia, ele Lorenzo (ou Renzo), são as personagens principais dum enredo passado no Norte de Itália no início do séc. XVII, num tempo em que o direito da força ainda prevalece sobre a força do direito. Dom Rodrigo, capo senhor de um bando armado de malfeitores que grassam ainda e que são avessos a todos os éditos que proíbem a violência, é a tal expressão da força que, tomado de apetites pela noiva, proíbe o mui pusilâme Dom Abbondio de unir em casamento o casal. O cura da aldeia revela-se em todo o longo romance um homem fraco e temeroso, indigno do Magistério ao qual foi chamado. Mas ele não é senão a figura passiva, e titubeante que não se opõe ao mal e que precipita toda uma correria desenfreada, pois os noivos empreendem uma fuga tal como coelhos que fogem da raposa.

Os diálogos são vivos e interessantes. Pela intervenção dum frade, Cristoforo, homem de discernimento e de bom conselho, Lúcia refugia-se num convento e estabelece uma amizade com a superiora, uma aristocrata que por força da família foi empurrada para a vida de clausura, embora não revelasse vocação para tal. É delicioso todo o retrato que é feito pelo autor sobre o processo que a conduziu à clausura, manifestando a profusão de sentimentos contraditórios sobre a autoridade paternal e a sua situação social, que torna quase impossível uma recusa por vir a professar os votos.  

Renzo, por sua parte, deambula pelas cidades, procurando um lugar a salvo, mas vai sendo condicionado pelas difíceis circunstâncias que encontra, muito diferentes da pacatez da sua aldeia. Sendo homem bom, trabalhador, parece-se como cão vadio, apanhando por tabela por estar onde não devia estar. No final da história, na agitação, vemo-lo por exemplo a ser acusado de espalhar a peste, por meios daquilo que o povo ia gritando, assustado, ser a acção dos que untavam as vestes dos demais e os lugares.  

Como advogado, o romance não me pôde deixar indiferente: é um sucessivo conjunto de episódios onde joga a justiça e a luta entre o bem e o mal. A força dos poderosos e a impiedade das suas acções, contra os indefesos humildes. O casal separado pela maldade, não encontra paz e passa por todos os tormentos - e parece que o mal é que tem a última palavra. E também percebemos que derrotar o mal não é fácil e que porventura será o mal a triunfar.

É um romance que nos deixa intranquilos, que cria aquela indignação própria daqueles que são acometidos por um grito interior de se levantar para fazer algo - porque ficar parado e sentado é compactuar. Percebemos que o frade Cristoforo é um destes homens para quem a injustiça é intolerável e que tem a coragem de se levantar, mas também percebemos que isso não deixa de o levar a ser prejudicado pessoalmente (é transferido para um outro convento onde a sua presença já não incomoda).

O arcebispo é outra figura notável. O autor retrata um homem santo e é extraordinária a admoestação que este faz a D. Abbondio. Creio que são das melhores páginas do romance as páginas onde se relata a forma como se relaciona com D. Abbondio. Como este vê o perdão concedido ao “Inominável” (o mau acima de todos, que num rebate de consciência enquanto havia detido Lúcia se desloca ao encontro do arcebispo), por contraste com toda a assertividade com que condena a sua tibieza quando, por medo de represálias de D. Rodrigo inventou desculpas para não casar o casal, e a sua apreensão de que está frente a alguém com as suas especificidades: um santo é sempre um homem difícil, peculiar.

Depois, por detrás de tudo, o romance projecta as convulsões sociais, as fomes, as invasões, as pestes, num quadro mais largo que a história dos dois protagonistas principais da história.  

São 720 páginas dum livro que se leem bem, numa escrita cativante que retrata bem os ambientes. Em certa medida faz lembrar livros como D. Quixote de La Mancha pelo retrato clivado das personagens, mas é um romance já mais recente. Não é um romance dos típicos do séc. XIX, daqueles com ambientes sofisticados como os que Eça retrata, mas é duma limpidez extraordinária na caracterização moral das personagens, que quase se poderia dizer moderna por nos apresentar problemas de consciência que são os de sempre. É pois uma obra-prima, já que as obras-primas são aquelas que independentemente do tempo em que foram feitas, mantêm a sua actualidade. 

O Papa Francisco elege este como o seu livro de eleição. E percebe-se porquê: nele transparece tanto de si, como a luta intemporal do bem contra o mal, a forma como o poder muitas vezes esmaga os humildes e transforma as narrativas, distorcendo a realidade, a importância do discernimento (muito jesuíta) e a riqueza das relações humanas, em especial da caridade e da amizade. Sim, este é também um romance que tem do melhor que pode ter a Humanidade.     

Li o livro numa edição muito cuidada das Paulinas Editoras, de capa dura e com imagens que muito ajudaram a suavizar número de páginas...



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