Na apresentação do livro "Quase um Soneto à Juventude", de Diogo Moreira
Os meus Verões de criança e juventude passei-os no mar da Praia Grande, onde a aproximação à água não é fácil, por razões eminentemente térmicas. O corpo em contacto com a água: os músculos retesados, esqueleto em sentido. Duas estratégias diferentes: permanecer esperando até que, já banhado pela espuma e salpicado pelas ondas, em gestos tímidos se avança passo a passo; ou acometer-se à frieza das águas num mergulho, decisão ainda assim por uma ou duas vezes adiada. Acho que nunca se entra na água da Praia Grande sem certa dose de ímpeto afirmativo; sou pois absolutamente defensor da segunda estratégia. Poderia haver aqui um quê de exibicionismo, mas manda sobretudo a fidelidade a uma pertença colectiva. A mesma pertença colectiva que me levava às carreirinhas nas enormes ondas com os meus amigos gémeos Taborda quando éramos ainda de borracha, ou ao exercício ousado de aventureiro quando o tio atleta Frederico Mayer nos dizia: “´’bora rapaz, vamos passar a rebentação e nadar até ver o Palácio da Pena!”. E nós com 12 ou 13 anos íamos!
Como não lembrar também nesse cenário, o tio Bernardo (o “avô Mayer” para os seus netos), sangue quente de irlandês (filho da ruiva avó Sarah que já não conheci), bisavô do Diogo e primo direito do meu avô Augusto, com o seu Sorraia na praia, que nadava no mar frio e nas ondas agitadas até conseguir devolver o pau, que o tio Bernanrdo arremessava para longe?
Uma longa amizade liga-nos aos primos da Quinta Velha, local único no mundo, aos pés do Castelo dos Mouros. Lembro-me do cheiro a bucho, muito característico. O seu chapéu-de-sol encarnado é o símbolo dos laços felizes que se criaram. Uma mão cheia de primos davam a nota para Verões animados e cheios de vida. Em relação a alguns deles como os filhos da tia Mónica, avó do Diogo, somos primos por dois lados, uma grande família alargada, marcada indelevelmente pelas irmãs Maias da Rua de Século e do Biester e pelos Mayers da Quinta Velha.
Na nossa geração, encontrávamo-nos durante o dia na praia, ou ao fim da tarde para um mergulho na piscina, em casa dos meus avós no Tojal do Casalinho. Lembro-me da tia Mónica descer a rampa da piscina com o mesmo entusiasmo com que o tio Bernardo punha nas coisas: “tio Augusto, podemos dar um mergulho na piscina?!” E lá chegavam aos magotes “os da Quinta Velha!”, como nós os chamávamos.
O Diogo pertence à geração abaixo da minha, que cresceu também neste espírito solidário duma grande família, herdeiro de histórias e memórias. O seu pai Nuno, historiador, era também um contador de estórias e como ninguém conseguia fazer-nos ligar a esse passado. Como nós o fizemos, também o Diogo e a sua geração, com fidelidades e pertenças a lugares já por outras gerações festejados, também terá acrescentado a esse fio de contas e contos.
Tenho tido oportunidade de estar variadas vezes com ele, de irmos volta e meia almoçar ou jantar. Tenho quase o dobro da sua idade, mas temos sempre motivo de conversa (dizem que a partir dos 40 devemos procurar amigos mais novos!) Aprecio nele a inteireza com que busca, com muita honestidade a sua voz e o seu lugar próprios, discretamente e sempre com essa bondade, muito sua. Alguém que sente e que numa extensão de alma oferece as suas mãos generosas para chegar aos outros e dar o que tem. A sua poesia é um diálogo que leva dentro (diz ele no seu poema “Não se é poeta por escrever”, pág. 76, citando Tolentino Mendonça que a poesia é para “saber olhar” eu diria também para saber ouvir como diz no seu poema Passarinho Escondido “Canta baixinho, passarinho escondido. Ouvirei sozonho, o teu canto sentido”, pág. 49) e tem uma dimensão transcendente, porque o Diogo habituou-se a olhar para as estrelas, como conta no poema que abre o livro. Na Quinta Velha está-se mais perto do céu, não sei se de lá também olha para as estrelas, mas eu diria que sim. E não sem uma certa pitada de orgulho também diz: “Podem outros saber melhor, mas não sonham como eu” (pág. 57). É que o Diogo reconhece-se como poeta, uma dessas “almas cheias de sensação” (pág.82), que têm dentro de si um astro que flameja, mendigos que dão “como quem seja Rei do Reino de Aquém e Além Dor” (de Florbela Espanca que diz que lê). Bem podia ser esse cavaleiro vaidoso, que o Diogo canta num belíssimo poema na pág. 87, “cavaleiro vaidoso, em busca de lutar; armado pelo armeiro, envolto no luar, bradava aos céus, de forma tempestiva: defenderei os meus; só por isso viva; Travou suas batalhas descritas em poemas, lidos quando malhas invejavam emblemas. Em cada aurora via voar a sua espada, vidrado na elegia: vida contada.” Há uma espécie de Romantismo à Alexandre Herculano na poesia do Diogo, do cavaleiro com a sua espada e disso o leitor se apercebe ao evocar o seu antónimo, Sancho Pança, do bom “rir e folgança”, pág. 58. Diríamos, aquele que refreia os avanços de D. Quixote, que vê monstros, onde só há moinhos.
De forma divertida escreve o Diogo em “Passeia-te, Paixão” que “Convém secar o platonismo d’uma paixão invulgar; e este poema é tentativa de a pôr a passear” (pág. 16). Não se sabe se é a paixão, se é a rapariga que ele quer pôr a passear, a ambiguidade faz parte da graça, parece-me!
Na serra de Sintra da Quinta Velha, a serra medieval, que ele canta com o seu Castelo dos Mouros, há também um cavaleiro solitário no Parque da Pena, bem ao estilo Romântico. Mas o Diogo não se basta a D. Quixote, e sabe mesmo rir e folgar e admite que até inventou um novo vocábulo: “palavreto”. O vocábulo “palavreto” é perfeitamente possível e compreensível dentro da lógica do português. O sufixo -eto/-eta é usado para formar: diminutivos (livreto, folheto, caderneta); ou versões pejorativas ou jocosas. Há uns anos uma criança italiana de 8 anos inventou uma palavra numa escola: "petaloso". O curioso caso gerou tanta repercussão na Itália que até o primeiro-ministro a ele se referiu. O termo significa literalmente "ter muitas pétalas" e refere-se a algo que é "bonito". A criança escreveu a palavra durante uma aula na escola primária, localizada na cidade de Copparo, região de Emília Romana e a professora resolveu enviá-la para análise da mais prestigiada academia de linguistas italianos. Após analisar o novo termo, a Academia admitiu que a palavra pode ser incorporada ao idioma italiano caso seu o uso passe a ser recorrente. "A palavra é bonita e clara. É necessário que ela seja não somente conhecida, mas também usada por todas as pessoas", foi o parecer da instituição italiana.
A língua é dinâmica e tem plasticidade, e há similitudes entre poetas e crianças. O Diogo, usando de liberdade criativa ensaia a potencialidade da língua e brinca também com as palavras. Num conjunto de poemas o Diogo, modela a língua ao seu propósito de expressão e diz em vez de “Tenho depressa de escrever”, “Tenho-de-pressa-de-escrever” (pág. 13), como que querendo enfatizar a necessidade “Tenho de”, repetindo “de” e “de” propondo-nos ainda haikus, verdadeiros jogos de espelhos, ao mesmo tempo complexos (porque escondem um mistério) e simples (porque em apenas 3 orações), e daí também extremamente difíceis de conseguir. Têm tradição no Japão e muitas vezes causam perplexidade, uma quase comichão. Escreve o Diogo em Haiku da Água: “Foi levemente, água transparente, quis-te poema” (pág. 62). Rima bem. A água foi-se, o Diogo queria ter feito um poema da água que se foi, com a corrente talvez. E canta em poema o poema que não fez!
O livro está muito bem organizado, há uma sequência. Por exemplo, ao poema água em que o Diogo pede à água que o limpe das suas dores e o deixe nadar (pág. 61), segue-se o Haiku da Água que acabei de ler.
Nota-se o conseguido esforço de dar coerência entre si aos poemas. Por exemplo, o Diogo canta os “Companheiros Eternos” e arrisco-me a dizer que serão os amigos a quem faz a Dedicatória do livro. Este poema é muito bonito, está na pág. 21. “Os nossos corações quentes, ternos, com a memória do sabor de viver. Uma militância que nos estreou num mundo que ousou trazer à luz do dia a magia que escondia: duendes, fogueiras, corridas, sorrisos ao vento na caixa aberta: ombros com ombros, almas queridas antes de serem condoídas. Demo-nos tanto. Tão certa infância, tão raras vidas.” Vemos aqui uma “camaradagem” na melhor expressão do termo, amizades sem preço (“raras vidas”), esses que são os “companheiros eternos” que sonharam em duendes juntos em fogueiras, corridas, ou esboçaram “sorrisos ao vento na caixa aberta”. Parece que vemos os seus rostos e aquele professor de Literatura no Filme Clube dos Poetas Mortos a sussurrar: “Carpe Diem, Carpe Diem”. Dizia que o livro está muito bem organizado porque logo a seguir a este poema, o Diogo tem um poema que começa com “Noite que não quer companheiros” (pág. 22), quiçá uma daquelas noites, que com ternura lembra o seu irmão pequenino “que ainda menino obedecia ao luar”; se pedia dorme menino, não são hora de brincar, levemente, e com tino, embalavas a ressonar, enquanto eu, enciumado, ficava horas a cismar (…)”. É porque, no caso do Diogo, estamos a falar de alguém que não consegue simplesmente calar as vozes que traz dentro de si e pousar a cabeça na almofada. É assim com pessoas sensíveis, pessoas cuja actividade subconsciente é muito rica, característica que não transparece imediatamente nos primeiros contactos com os outros, mas que são almas inquietas. Por isso também o desalinho com aqueles que são meramente práticos, no seu poema na pág. 82 escrevendo sobre o Direito e que apenas repetem, sem nada criar. No Novo Testamento, Marcos conta o episódio de Cristo que se encontra com um endemoniado em Gerasa, que não conseguia calar as várias vozes perturbadas no seu interior. O Diogo refere no poema “Irmão Pequenino” “sei porque não dormia: a minha mente é um diabinho”, pois… almas sensíveis precisam de espaço e tempo para se afinar e podem desafinar com facilidade, como aquela guitarra nas mãos do músico que o Diogo diz “seis cordas a chiar, acudam! Corram, há um músico a chorar” (pág. 83)
Almas sensíveis talvez sejam menos esfuziantes, diga uma que o é também. Mas parece que há uma reconciliação, ele que canta também a melancolia: “Doce, tu, melancolia, não fujas daqui, tu que és poesia, minha melancolia”. Na poesia o Diogo encontra uma forma de ir afinando essas suas cordas interiores, num solilóquio (no último poema agradece poesia: “Obrigado, poesia, amiga do meu ser”, pág. 88). A poesia, a arte e talvez a fé vão-no salvando. É aí que o Diogo encontra sentido.
O título do livro “Quase um Soneto à Juventude” parece-me bem escolhido. Vejo uma pessoa à procura, como é próprio da Juventude. À procura de si, à procura do amor. Todavia, vê-se alguém que já ama, porque procurar é já encontrar: “Procurei, com tudo, a verdade do amor ao outro, o bem” (pág. 79): o filho que ama, com uma identidade de filho amado pelos seus pais (quem conhecia o Nuno sabe como ele era um óptimo pai; e basta ler o poema “Mãe que ganhou” para ver como a Sofia, na sua discrição, irradia a luz duma tocha incessante, pág. 71, por isso o Diogo diz: “não a esconda: ganhou!” - diz tudo!); ou o neto que não esconde a admiração pelos seus avós e o seu “amor sapiente”. O companheiro e amigo. Ou o jovem homem que tem muito amor para dar e que o faz com grande nobreza. Nos sonhos de amor (“Ela que não conheci”, que lembra Garota de Ipanema de Vinicius de Moraes, ou “em Pouso da Mulher Bela”), em histórias que acabam (como “o amor que não deu”) que o Diogo apresenta. O Diogo ensaia-se no amor, que quer aprimorar: como cavaleiro para se oferecer à sua donzela.
Dá-se a conhecer, com muita transparência e mostra-nos a vida a desenrolar, os seus lugares. Fala também de Lisboa, “Lisboa dos baixos e altos. Lisboa do rio que quer mar. Cidade, fazes assaltos aos corações do que vivem, com almas cheias de amar, e nas quais pões vertigens” e senta-se no Jardim das Amoreiras ou junto à Sé, bebendo uma cerveja, lendo um livro. Gestos simples. A vida é feita destes pequenos nadas que são tudo. Parabéns Diogo, continue a “poesar” e a continuar a reparar nas estrelas, pois isso é sinal que continua jovem e a juventude está na curiosidade e em estar sempre aberto ao espanto. E, por último, pode contar comigo para aquele mergulho do dia 1 de Janeiro, na Praia Grande, este ano não falharei!

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