Mudaram-se os tempos

A minha geração nasceu depois do 25 de Abril, é uma geração pós "Ancién Régime", nascida com a democratização e com a massificação que a ela está associada. Pertenço a uma família que era dita "privilegiada", que viveu até perto dos anos 70 com foros de propriedade, cujas benesses se estendiam de forma que abrangia um número elevado de pessoas, que se uniam por laços de parentesco. Havia uma generosidade familiar e uma comunhão alargada de afectos, que se unia à volta de casas e quintas, com grande respeito por precedências. Os mais jovens viviam uma vida animada, despreocupada, feita de veraneios extensos em quintas em Sintra, de amizades em escolas ditas "normais" como o Liceu Pedro Nunes e de solidariedades em clubes de rugby (como o CDUL).

"O menino é filho de quem?", ouvia-se. Era-se sempre filho de "alguém". Ouso até dizer que havia normalmente uma complacência para as diatribes e asneiras dos da classe...

O 25 de Abril - que se vinha anunciando já desde finais dos anos 60, com a liberalização cultural que aí se começa a situar e a preponderância da classe média que se alarga -, a agitação política, as nacionalizações, as ocupações, as emigrações para o Brasil e para outros destinos, deixam essas antigas gerações "privilegiadas" completamente abaladas, e até quebradas.

Os anos dourados dos fundos comunitários distribuíram riqueza e poderiam ter permitido um verdadeiro crescimento económico, mas desde 2000 que Portugal vive uma crise tremenda, muito propiciada pela ajuda fácil ao consumo. Alguns grupos económicos refizeram as suas fortunas, novos surgiram, mas o que ficou foi sobretudo a modernização, bem sucedida diga-se, do sector terciário. Perdemos a agricultura, as pescas, a indústria. Mal nosso? Mal da Europa? Deixo a pergunta no ar.

Tenho 37 anos e tenho a sorte de ter emprego, mas julgo que nunca poderei aspirar ao nível de vida dos meus pais, que beneficiaram da vaga de bonança dos anos cavaquistas, que distribuiu pecúlio por toda a sociedade. Hoje podemos viajar, temos acesso, como nunca, a informação, mas parece-me que vivemos numa incapacidade crónica amealhar e a minha geração não vê muito mais do que o fim do mês (e as que saem agora da faculdade, nem isso sequer!).
Vivemos em democracia, mas a nossa democracia cansa-nos a todos. Ouvimos permanentemente  escândalos e desacreditámos da política, onde abunda a falta de ética. Não há projecto de sociedade, quase todos se remetem para a vida privada.
A sociedade é muito mais complexa do que era há 50 anos. Falta a estabilidade, a rotina, a solidariedade que as gerações anteriores tinham e que era bom. Também ensinavam valores. Mas se calhar apenas alguns poderiam gozar da beleza e do tempo livre.
Hoje todos podem ir ao cinema, a um concerto, a um restaurante, todos podem viajar. Se calhar é mais equilibrado. Mas está a faltar a economia e faltam as referências.
Desde há algum tempo que me debruço sobre a memória dos tempos idos, muito centrado no que guardo da minha infância da vida familiar com os meus avós, os meus tios e os meus primos. Ainda permanece em mim o peso da herança da generosidade alargada que partilhámos, feita numa amizade/fraternidade com os meus primos. Feita da convivência que tivemos na Quinta do Tojal em Sintra, sobretudo nos Verões. Escrevi no ano passado que o amor que o meu avô Augusto devotava ao seu jardim "que todos os verões se enchia num colorido de cravos túnicos cor-de-laranja e amarelos, alegrava os nossos verões de criança. Nas tardes de Domingo, juntávamo-nos todos no terraço, entre limonada e fatias de pão com manteiga, a piscina e o ténis. Aquele saber viver, feito de gestos simples e duma generosidade colectiva de primos, pais, tios e avós, que se encontrava naquele terraço para saborear o belo jardim e alegria de estarmos todos ali, com uma simples limonada e pão saloio com manteiga, é das melhores memórias da minha vida."

Tenho estado a trabalhar na história do Cinema Tivoli, que em breve fará 90 anos de existência, e aí, nos anos em que a minha família esteve envolvida na sua gestão, identifico tanto do passado feliz que várias gerações viveram: uma sociedade de hábitos, de códigos, de identificações; e naquilo que a minha família relata, esse conceito de generosidade alargada entre gerações e o conceito de família alargada que se está a perder.

Apesar de Portugal ser hoje, na generalidade, uma sociedade mais igualitária, creio que todos, independentemente dos meios de proveniência, sentem uma necessidade de terem uma identidade que os enraíze. É o que Pierre Nora no conceito que utiliza de "aceleração da história" valoriza quando contrastando memória/história, nos explica que é preciso comemorar o passado com os chamados "lugares de memória": datas e locais que nos permitem recriar um passado colectivo. A história é fria, objectiva, a memória é vida. Como a memória como que se perdeu, nessa aceleração, é preciso recriá-la, dar-lhe oportunidade de ressuscitar ou mesmo reinventá-la.

Nas leituras que tenho feito para o meu livro sobre o Tivoli (justamente "Tivoli, Lugar de Memórias), foi interessante ler o livro sobre António Ferro ("António Ferro, a Vertigem da Palavra - Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo", de Margarida Acciaiuoli, Bizâncio, 2013). Dizia ele um pouco para tentar retratar o povo português:

 "... Fazer desporto é ainda uma excentricidade, uma originalidade. Ir passar o Week-end a uma praia vizinha, a uma cidade próxima, é uma loucura que só é permitida aos ricos... Rir com prazer num dia de sol, ao ar livre, parece mal... Dançar publicamente, quando se tem um nome e uma personalidade, é expor-se ao ridículo... Inscrever os filhos na legião dos escuteiros, é ser mau pai, é não ter cuidado com as crianças... Encontrar um grupo de raparigas, em pleno campo, confraternizando com a natureza, cantando, brincando, sonhando, é dizer que se encontrou um rancho de levianas, é fazer sobre todas essas raparigas as suposições mais absurdas e mais caluniosas... Pensar num teatro de vanguarda, numa revista de ideias, é marchar para o sacrifício, é ter a certeza antecipada de não contar com os espectadores nem com os leitores.. Não ser «pão, pão, queijo, queijo» em arte e literatura, é ser futurista, é provocar o desdém, a indiferença ou o ataque..."
 Meu Deus, quanta mudança!
    

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