Do Quénia a Paris, a viagem amarela do caçador de escorpiões
A tarde
arrastava-se, demorada, e o calor, insuportável, impunha recolhimento. A longa
espera pelo pódio nocturno da 100.ª edição suplicava por uma leitura
condicente. Uma fotografia, a toda a altura da primeira página, salpicada por
letras que anunciavam o “Rei Sol”, facilitou a escolha. Num café, recolhido da
artéria principal, o PÚBLICO abriu a bíblia do desporto francês e deparou-se
com um Chris Froome desconhecido. Talvez em jeito premonitório, dada a
supremacia do britânico naquele ano e as evidentes capacidades de trepador
evidenciadas no ano anterior, quando foi segundo atrás de Bradley Wiggins, o
L’Équipe viajou para Portugal e ficou esquecido numa estante. Até este domingo.
Neste domingo,
foi dia de folhear de novo a estória do vencedor da Volta a França 2015 numa
viagem que começa num bairro residencial de Nairobi, no Quénia. Do encontro
entre Clive, um antigo jogador de hóquei da selecção britânica de sub-19, que
emigrou para organizar safaris, e de Jane, filha de comerciantes de café,
nasceu Chris, a 20 de Abril de 1985. O petiz, de pernas escanzeladas e tez
branca, passou a infância na natureza. Quando não estava a acampar com os
irmãos Jonathan e Jeremy, a perseguir escorpiões e serpentes ou a caçar coelhos
para alimentar as suas duas pitons, Rocky e Shandy, “Froomey” passava horas a
percorrer, de bicicleta, os 2000 metros de desnível do vale do Rift, com a
única condição de voltar a casa antes do anoitecer.
Enérgico e aventureiro, o mais novo dos três irmãos perdia-se em
sonhos. No seu boletim escolar as queixas multiplicavam-se. Preocupada, Jane
Froome procurou David Kinjah, um antigo ciclista que treinava vários miúdos e
perguntou-lhe se o seu filho, então com 11 anos, podia juntar-se à prole nas
férias escolares. “O Chris era apenas um rapaz cool, sem aptidões especiais,
sem músculos, com um rosto de bebé, como os da banda desenhada. Mas a sua
melhor característica, a que ainda hoje mantém, é o espírito positivo. Era gentil
com todos, fazia amigos rapidamente, era muito generoso, partilhava tudo”.
Durante quase
quatro anos, a modesta casa de Kinjah, na aldeia de Kikuyu, tão pequena que, à
noite, as bicicletas ficavam suspensas no tecto, foi o lar do duplo vencedor do
Tour. Com aquele que define como seu mentor e o maior responsável pelo seu
sucesso, o único rapaz branco daquelas paragens aprendeu a falar swahili e a
trabalhar em equipa, desenvolveu a sua técnica e interiorizou que para ser um
campeão tinha de ser um só com a bicicleta.
Estudioso e resistente
Um duro golpe — o
divórcio dos pais — separou o líder da Sky de David Kinjah. Partiu com o pai
para a África do Sul, onde viveu em regime de internato na St. Andrew’s School.
Experimentou râguebi, críquete e squash só para descobrir que, num país onde as
corridas de bicicletas proliferavam, o ciclismo era o seu destino. Tentou
contorná-lo ao matricular-se em Economia na Universidade de Joanesburgo, mas
dois anos a levantar-se às 5h00 para pedalar duas horas e um telefonema do dono
de uma pequena academia de ciclismo foram suficientes para reconsiderar o seu
futuro.
Robbie Nilsen prometeu ensinar-lhe como sobreviver às nervosas
provas sul-africanas, mas ele queria mais. Consultou livros de metodologia de
treino, psicologia, nutrição. Definiu uma dieta rígida, ganhou massa muscular.
Tornou-se trepador. No final de cada treino, vestia uma saia queniana, como um
guerreiro. O cabelo longo e as pulseiras coloridas que usava justificaram a sua
alcunha. “Moisés” tornou-se profissional em 2007, na sul-africana Konica
Minolta e representou a equipa de desenvolvimento da União Ciclista
Internacional, captando a atenção da multiétnica Barloworld. Na sua progressão,
exibia orgulhoso as suas raízes africanas, em camisas tradicionais do Quénia, o
país do qual abdicou em 2008 devido a um diferendo com a federação nacional.
Sem nunca ter
vivido na Grã-Bretanha, escolheu ser britânico. E foi essa escolha que
determinou o ciclista que é hoje, um corajoso que aprendeu a viver com a
bilhárzia, uma doença tropical parasitária incurável que destrói os glóbulos
vermelhos, e um corredor extraordinário que soube esperar pelo seu momento para
ser líder da super-poderosa Sky.
Neste domingo, o
tímido e educado “Froomey” subiu, pela segunda vez, ao degrau mais alto do
pódio em Paris. “Foi um Tour muito difícil, sobre a bicicleta e fora dela. É um
sentimento incrível poder estar aqui. Houve algum stress durante a prova, mas é
o ciclismo de 2015... Quero prestar homenagem aos meus colegas e dizer-lhes que
esta camisola amarela é tanto deles como minha. Eu conheço a história da
camisola amarela, os lados bons e os maus, e prometo que não vou
desrespeitá-la”, assumiu o vencedor, de microfone em punho no centro da capital
francesa.
Ana Marques
Gonçalves, In "Público", 27 de Julho de 2015
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