Em busca do Leopardo perdido


Aquele que um dia escreveu que é “preciso que tudo mude, para que continue tudo na mesma” disse que o seu romance Leopardo nasceu porque precisava da memória da sua Sicília antes dos bombardeamentos da Segunda Grande Guerra. Com a destruição de Palermo, corria o risco de perder a sua identidade.

Das pedras que se põem a falar, José Sarmento Matos, ressuscita as pessoas que lá viveram, e restora-nos a um tempo e a uma cidade que se foi esquecendo por entre camadas que se sobrepuseram. Despontam é evidente, manifestações desses tempos: a Sé de Lisboa, a Cerca Fernandina, o Castelo, o Convento do Carmo, entre tantos outros edifícios. Nesta Lisboa que é um cenário montado junto ao Tejo, sobre-elevado em colinas ondulantes, o antigo e o novo convivem lado a lado. Uma cidade heterogénea, de traçados antigos mas também de boulevards modernos que, tal qual secções de pista de comboios de Natal, se associou àquilo que, de tempos imemoriais, se construíra nessas colinas. Uma cidade que nas suas planícies deixou de ser industrial, onde as profissões dos antigos mesteres desapareceram, onde já não há pregões e, só de raro em raro, se ouve o amolador. Daquela cidade que se perdeu no tempo, nobre e altiva, a sujidade e a acomodação à vida de velhos à janela e de novos que jogam à bola nas suas calçadas, não deixa de lhe dar um encanto romântico. E que lembra outras paragens, Nápoles, ou quem sabe também essa Palermo de Lampedusa?! Ou Istambul: pelo Tejo e pelas suas colinas lembra também a cidade do Bósfuro! Lisboa não deixa de ser uma cidade mediterrânica... apesar de não o ser... 

Toda a cidade tem a sua identidade. Italo Calvino apresenta-nos 30 cidades, todas elas diferentes, que se sentem e vivem de forma diferente.

Como um organismo vivo a cidade adapta-se, como hoje se soe dizer, reinventa-se. Que não se repitam os erros do passado. Que não se apaguem as casas burguesas das Avenidas, substituídas por força de razões mais fortes em visão de curto prazo ou por lógicas arquitectónicas arrogantes. Não há praça do nosso País que não tenha uma Agência da CGD ou do BNU feita no estilo modernista mais disruptivo e que cria chagas na estrutura urbana.

Mas entendamos também que a identidade é um processo aberto em que a construção de si é feita numa narrativa aberta e sempre evolutiva, como Ricoeur nos quis transmitir.

Há que procurar critérios operativos. Por exemplo, o quadro legal actualmente vigente não permite demolir edifícios, a não ser em casos de ruína, ou se a solução arquitectónica seja melhor para a cidade (neste último caso, a não ser que haja qualquer protecção patrimonial, i.e, classificação patrimonial ou pertença à Carta Municipal do Património, em que a demolição tem que estar integrada num estudo urbano). Na Área de Reabilitação Urbana, que engloba quase todo o município de Lisboa, sempre que um imóvel esteja em Zona Especial de Protecção a edifício classificado ou seja ele próprio classificado deve ir à Comisssão Apreciação, comissão integrada pela CM de Lisboa e pela DGPC.
  
A DGPC e a própria CM de Lisboa (através da sua Estrutura Consultiva), estão muito atentas actualmente a questões de património, sendo muito restritivas a tudo o que são demolições. No entanto, por vezes, tem havidoalguma falta de fundamentação de determinadas posições, que defendem uma visão imobilista da realidade, e que pretendem impedir toda a intervenção mais profunda, por defesa intransigente de tudo o que é passado, mesmo que esse passado não tenha especial interesse. 

Isto pode impedir que a cidade se reinvente, pois a cidade tem que contar com o contributo desta geração e das futuras, que precisam de a reinterpretar aos seus olhos, de adaptar a funcionalidades novas e de acrescentar o seu contributo criativo.

Rem Koollhas, talvez um dos expoentes mais conhecido da desconsideração da análise patrimonial pré-existente e arquitecto da Casa da Música no Porto, diz “f*** context”. Não há dúvida que o caso da Casa da Música, é um caso particular e foi pensado para ser um edifício icónico, que não deixa de ser uma provocação interessante no seu grande contraste com a envolvente, tal qual nave espacial que aterra na cidade; mas já ao usar no seu interior elementos como o azulejo tradicional fá-lo duma forma que nos parece artificial, ao estilo “kitch”, ridicularizando-o de certa maneira. Nesse aspecto, preferimos Frank Ghery, que utiliza uma plástica escultórica em contextos orgânicos, mas que vai aproveitar muitos elementos pré-existentes, como a luz que reflecte nas suas estruturas espelhadas.

Manuel Aires Mateus, é apontado como um dos mais prominentes arquitectos da actualidade, com reconhecimento nacional e internacional. A sua arquitectura, tem uma indiscutível qualidade  plástica e insere-se na malha urbana com uma expressividade evidente (veja-se a título exemplificativo o edifício icónico da nova sede da EDP).

Qual a apreensão do contexto na sua arquitectura? Há um evidente exercício de inovação em Aires Mateus, como lê as pré-existências e os contextos urbanos?!
Uma das intervenções mais recentes dos arquitectos Aires Mateus em Lisboa diz respeito a uma intervenção na Rua da Lapa, tornejando para a Rua S. João da Mata e que deu muita polémica, com demolição duma casa antiga de um piso para dar lugar a um edifício de quatro pisos, de grande expressão volumétrica, na minha opinião excessiva.

Na memória descritiva do projecto refere-se: “propõe-se uma construção nova que se alicerce na memória do existente”. Manuel Aires Mateus defendeu o projecto dizendo que “não é um edifício com um desenho para ser muito visível nem marcante, tem a modéstia de ser acompanhante da geometria das outros edifícios da cidade”.

Na apreciação do projecto pode ler-se “harmoniza-se volumetricamente com a envolvente”, no entanto independentemente da subjectividade inerente a esse juízo, a altura do edifício foi buscar o máximo de altura à Rua da Lapa e não deixa de ser um volume que tem um fortíssimo impacto visual, máxime no que respeita à Rua de S. João da Lapa, onde a expressão altimétrica das casas é geralmente muito menor.

A consciência dos lugares e da sua identidade tem despertado discussão em alguns outros projectos. É o caso do projecto da intervenção de Souto Moura na Praça das Flores (obra parada por acção judicial segundo creio), ou o caso do Museu Judaico em Alfama.

Cada caso é um caso, não se pode generalizar, mas convém termos um olhar atento.

Há quem fale por exemplo de algo a evitar, o chamado “fachadismo”, mas perguntamo-nos se, muitas vezes, não é preferível manter uma unidade visual na cidade, adaptando interiores a novas funcionalidades do que simplesmente demolir.

Juhanni Pallasmaa, arquitecto finlandês de referência, alerta que “a coerência e a harmonia das paisagens e as ricas camadas de património histórico não são mais consideradas como objectivos essenciais na arquitectura. A expressão artística e a inovação, substituíram a nossa busca por sentido existencial e impacto emocional (…); Da novidade espera-se que evoque interesse e excitação, enquanto qualquer referência à tradição da expressão artística em questão, já sem falar na intencionalidade de tentar fortalecer o continum da tradição, são vistos como uma fonte de enfado”.


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