Os véus de Lisboa

O Príncipe de Lampedusa escreveu o seu Leopardo como testemunho dum mundo desaparecido: a sua Sicília que a destruição da guerra e uma nova geração de dirigentes veio mudar para nunca mais nada ser igual.

As leituras sobre Lampedusa e sobre a Sicília têm o condão de em mim me fazerem amar mais estas cidades antigas como Lisboa. Há também em Lisboa um fundo antigo, um quê de passado que subjaz ao nela nos passearmos. Os seus telhados e o Tejo sempre cambiante, recordam-nos que é uma terra de chegadas e partidas, que é uma cidade portuária, que evoca lonjuras: tanto as geográficas como as lonjuras dos tempos antigos. Esses telhados são as velas das embarcações que se fazem ao mar.

Ontem, pelo Chiado percorria os livros dos alfarrabistas. Fixei-me num livro que evocava o Chiado de antigamente. Muito mudou, mas ainda se encontra algo desses tempos, uma certa classe e distinção. Basta-nos entrar naquelas salas chiques do Turf e tentar-nos transportar para esses tempos, ou mesmo avistar a escadaria do Tauromáquico. Há um certo espírito novecentista que ficou.

Lampedusa saia do Palazzio Butera e ia ler todas as manhãs para um café. Parece que era o ritual diário, numa aparente ociosidade própria da velha aristocracia. Gostava de Shakespeare. Diz-se que a mãe, antes que ele aprendesse a falar italiano, quis que aprendesse francês e inglês; depois de dominados esses idiomas de cultura, então sim, que aprendesse o italiano.

O Leopardo é uma espécie de herança espiritual dele, a marca que deixou por si impressa de que havia um mundo antigo de que ele fora um dos últimos a viver e que se não o contasse, morreria incógnito em campa comum de cemitério.


Lisboa também deve ter tido o seu mundo "Leopardo".

José Sarmento Matos ressuscitava as pessoas e as pedras e isso é que é bonito, porque a história é sempre viva. Houve gente que respirou, que amou e que desenvolveu a trama da sua vida entre paredes. Recriar ambientes, contar a história de quem viveu certa época, que percorreu ruas e frequentou teatros é fazer reviver os ambientes que as pedras, porque mudas, calam, mas é fazer um tributo ao peso que essas pedras carregam de tantos anos "às costas" e das tantas vidas que testemunham. 

Ontem, em S. Domingos, no final da missa um velho negro no momento da comunhão começou a entoar um  cântico sozinho: "Deixa a luz do Céu entrar, Deixa a Luz do Céu entrar no teu coração". Que gesto bonito. Não foi a primeira vez que vi negros cantarem sozinhos: ali, numa outra missa, já assistira a uma senhora negra fazer o mesmo.

Naquela nave grande e especial, uma voz se ergueu a cantar sozinha com uma candura dum português quase infantil (enternecedor); não há dúvida que nos faz pensar de que há qualquer coisa de eterno no espírito humano e que a fé nos faz cantar; que é um grito de liberdade. Tal como o pardalito que canta porque sim, a fé é a alegria que não cala. E, assim, pensei se, nesta Lisboa, não existirão resquícios de uma cidade antiga, em que os valores foram outros. Muito mais parecidos com os da Itália de Nápoles ou Palermo, de famílias ricas e de criados. Em que as estações se repetiam e haviam hábitos colectivos: a regularidade das estações frias com a família alargada debaixo do mesmo tecto e todo o batalhão de serviçais, a evidência de se pertencer a um ou a outro dos sexos e todos os rituais a eles associados (nos homens o fazer-se um gentleman, nas mulheres a decência e o decoro), a chegada do Verão em que os móveis se tapavam e as as casas fechavam-se para se passar às frescuras do campo.

Esta regularidade aparentemente monótona e a injustiça classista serão imediatamente notas que nos exige o politicamente correcto dos nossos dias, mas não podemos deixar de tentar perceber esse mundo antes de o julgar. Creio que é essa a riqueza de um Leopardo. Faz-nos mergulhar nesse mundo, a partir dum olhar habitado: não um olhar cirúrgico, analítico. Recriar um ambiente é essa capacidade de compôr uma mundivivência. E o amigo José Sarmento Matos fazia-o também admiravelmente.

Aquele negro que canta em S. Domingos donde virá? Estranharia muito que fosse um resquício dessa Lisboa do antigamente?! Poderia ter aprendido a cantar assim numa velha capela duma família antiga de Lisboa?! Lisboa tem destes mistérios.









  

   











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