O Burro e a Carroça

Uma das crónicas publicadas no Expresso seleccionadas para o livro "Onde está o Mal?" (Sopa das Letras, 2002), de António Pinto Leite tem como título "o Burro e a Carroça", um texto que ontem revi pois ficara-me na memória. 

Tem a ver com a existência de dois universos antagónicos no país, aqueles que trabalham, que agem, que produzem e aqueles que se deixam no marasmo, que falam de direitos e regalias, que aproveitam as disfunções do sistema a seu favor. Parece que uns são "trouxas", os outros "espertos", uns são ingénuos, os outros sabem que no mundo não há heróis - e que não vale a pena ser-se herói. 

O mérito de António Pinto Leite é que não pensa o burro sem a carroça, nem a carroça sem o burro. A questão é que estão indissociavelmente ligados - é essa justamente a questão. Diz-nos António Pinto Leite, há 20 anos de distância e ainda tão actual: "os Portugueses , no seu todo, não têm interiorizado que a produtividade é a primeira forma de solidariedade. Porque o que um faz o outro não terá que fazer, porque se todos forem produtivos os mais produtivos poderão ter vidas mais razoáveis, porque a produtividade leva à riqueza e a riqueza distribuída leva à justiça social, porque a produtividade de cada um é condição de sobrevivência do conjunto. Há em Portugal os que fazem de burro e os que fazem de carroça. Há os que puxam e os que se deixam puxar".

É um problema do Estado de Providência, mas também duma cultura pouco exigente, que perdoa e se conforma com os maus prestadores, onde o "porreirismo" é sinal de se ser boa pessoa. Falta cultura de trabalho e disciplina tantas vezes, o que mais não é do que falta de boas lideranças. 

A falta de liderança em tantos sítios faz com que tantas vezes os maus proliferem e façam o seu caminho, prejudicando todos os outros. Isso é um dos sinais mais claros da demissão das chefias. Ser chefe é decidir - e decidir compreende tomar decisões difíceis, o que na realidade é algo que raro acontecer.

Tenho ouvido de amigos que trabalham em alguns serviços da Administração Pública relatos terríveis. Ambientes de trabalho completamente putrefactos, contaminados por climas pesados, onde as pessoas não gostam de trabalhar e onde se mata toda a vontade. Como poderiam servir os cidadãos, se internamente a cultura é uma tipo "faz o mínimo possível e não sorrias muito", porque isso quer dizer que estás com pouco trabalho, ou onde toda a vontade de bem servir emperra na estrutura hierárquica, que apara todo o ímpeto mais dinâmico? A impotência que se sente de se fazer parte duma engrenagem, onde o nosso trabalho é engolido pelo "monstro"... 

Do que se trata, é dum problema verdadeiramente motivacional. Temos de perceber o fenómeno, pois muitos desses funcionários são "mortos-vivos": a máquina tirou-lhes todo o entusiasmo, toda a vontade. Arrastam os pés. A culpa só é em parte deles, eles são muitas vezes as vítimas. Se lhes perguntasse se prefeririam trabalhar num sítio onde sentissem que o seu trabalho é valorizado, onde se sentissem mais úteis, onde se vivesse mais num espírito comunitário e de entre-ajuda, mesmo que trabalhassem mais estou em crer que prefeririam: não é próprio do ser humano viver para dar apenas os mínimos; isso apenas acontece porque o medo alastrou e o entusiasmo minguou.

O assunto interessa a todos. Estamos ligados. Pagamos os nossos impostos e não podemos conformar-nos com maus serviços aos cidadãos. 

Há também exemplos de óptimos serviços públicos, felizmente que os há.

Devemos tentar perceber estes fenómenos. Ser criteriosos. Pensar se estaremos a progredir - ou a regredir - e há coisas que se estão a passar que nos devem deixar especialmente alertas. Tenho p.e. constatado que depois da pandemia os serviços públicos, na sua generalidade, perderam qualidade. É difícil que nos atendam telefones, raramente nos dão a resposta a qualquer questão a tempo (mas normalmente os serviços estão prontos a sancionar a tempo..) Respondem-nos muitas vezes que há quem esteja em teletrabalho - mas ouvimos muitas vezes de amigos, também funcionários públicos, que o teletrabalho é essencialmente um dia de folga a mais, que todos nós pagamos com os nossos impostos... Se calhar basta ver as nossas praias cheias durante a semana e se calhar é aí que muitos em "tele-trabalho" se encontram..

A burocracia/"burrocracia" não parece estar melhor... a carroçaria vai estando empenada e pesada...



 


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