Mergulho no mar

A aproximação não é fácil porque o mar não é muito convidativo: a beira-mar inclinada a obrigar o bíceps da coxa a estar em tensão, as ondas desobedientes a uma ordem certa e, sobretudo, o primeiro impacto dos pés com a água desencorajante, por razões eminentemente térmicas.  
O corpo entrando no mar: os músculos, alguns deles retecidos, outros como os da barriga encolhidos, o esqueleto em sentido. Duas estratégias diferentes: permanecer esperando até que, já banhado pela espuma e salpicado pelas ondas, em gestos tímidos se avança passo a passo; acometer-se num mergulho - cuja decisão ainda assim é por uma ou duas vezes adiada - à frieza das águas.
Eu acho que nunca se entra na água da Praia Grande sem certa dose de ímpeto afirmativo; sou pois absolutamente defensor da segunda estratégia definida. Poderia haver aqui um quê de exibicionismo, mas manda sobretudo a fidelidade a uma identidade pessoal filiada a uma pertença colectiva. Mas, para mim, é antes de mais e acima de tudo, um ritual pessoal, e posso fazê-lo em diferentes alturas do ano, esteja ou não gente na praia.
Nos primeiros dias de praia, ainda é Primavera, a experiência resintoniza-nos.
Depois do mergulho, as primeiras braçadas são para nos escapar às ondas e encontrar um lugar mais seguro. Podem ser braçadas e mais uns tantos mergulhos, tanto maiores quanto as ondas que lá vêem. Um e mais um mergulho, a respiração sustida debaixo de água, os olhos fechados e, finalmente, aquele bálsamo de iodo. O corpo ainda frio, movendo-se com o balanço das ondas, adaptando-se aos cambiantes do mar e agindo como um peixe pequeno, que se vai deixando levar pela maré e que, para ganhar profundidade e espaço, com alguns gestos e batidas retoma o poder de decisão.
Fico como que suspenso no tempo. Invade-me um bem-estar indescritível. Todo o corpo parece que é massajado. Em poucos minutos, sou remetido para os dias em que passava as minhas tardes de Verão mergulhando e fazendo ousadas carreirinhas, nas maiores ondas. Era então de borracha. Uma enorme onda, que rebentava subitamente tal parede derrubada por um terramoto, atirava-me para o fundo e até às vezes fazendo-me brutais torções, que, como era de borracha, pouco tempo depois se desvaneciam incólumes. Atirar-me de cabeça para uma e outra vaga, acompanhado inúmeras vezes por amigos e primos.

Não são precisos muitos minutos para o corpo estar habituado à temperatura. E deixar-se assim estar… como peixe na água. Posso ficar por uma hora e tudo se reconfigura. Desintoxica-nos. Saímos com frio, mas de bem com a vida, rejuvenecidos.
Já fiz a experiência noutras praias. Hoje em dia frequento outras praias. O mar sempre me desperta esse bem-estar. Adoro aquele deixar-se ficar, aquele doce balanço. Muitas vezes, ao final da tarde, quando o tempo está melhor dou um salto à praia.
Penso que os lisboetas foram bafejados pela sorte por viverem neste extraordinário estuário que desagua no Atlântico.

Há uns anos, estive na Bretanha, no Norte de França, ainda não era Verão. Esta frescura que o Atlântico nos dá, é a mesma que banha cidades como Saint-Malo, uma cidade fortificada, com uma grande baía e onde despontam um cem número de ilhas, que veleiros de velas brancas percorrem. Os largos e vastos areais onde as marés entram suavemente, fazendo grandes poças de água, a intensidade do iodo e a luz bonita, com o forte mesmo de fronte levaram-me para outro tempo. Havia reminiscências de Enith Blyton e das aventuras dos Cinco. Imaginava ali uma história de descoberta e de aventuras. Umas férias de Verão recheadas de correrias - essa imagem consegui voltar a reconhecer, repetidas vezes nas praias do Estoril, enquanto passeava no paredão, onde o íodo é tão intenso. Penso mesmo que o iodo não é indiferente!

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