Ser advogado



O QUE É VERDADEIRAMENTE UM ADVOGADO?

Um parceiro? Um amigo?
Sempre gostei de pensar na relação advogado/cliente como uma relação de parceria. Segundo Fried, um professor americano, o advogado será alguém que guia o cliente no sistema legal: “as instituições sociais são tão complexas que sem a assistência de um consultor especialista, um leigo comum não pode exercer a autonomia a que tem direito dentro do sistema”. A função do advogado seria assim “preservar e incrementar a autonomia do cliente dentro da lei”, sendo que etimologicamente “advocatus” derivou da expressão latina "ad auxilium vocatus" (o chamado para auxiliar).
Hoje sistema legal é tão complexo, difícil de enxergar e aplicar, que só alguém formado para o efeito tem ferramentas para se orientar nesse sistema. Com a produção legislativa abundante, o velho ideal liberal de que o cidadão deve conhecer a lei e que se plasma na máxima de que “a ignorância da lei não aproveita a ninguém”, resulta em algo hoje de impossível concretização. O Diário da República todos os dias expele nova legislação e regulamentação, que é impossível acompanhar o seu passo.
Um parceiro é alguém que nos convém. Com quem partilhamos os nossos problemas, as nossas dificuldades, os nossos projectos.
E que, questão fundacional da relação na minha óptica, que está também num certo grau de paridade connosco, contrário a situações de domínio ou de sujeição.
É aquilo que poderíamos dizer uma “relação adulta”, em que a consciência da autonomia e da liberdade de ambos, é um dado indelével da questão. Por excesso, do lado do cliente, diríamos que essa autonomia e liberdade se veriam restringidas se o advogado fosse meramente uma “pistola de aluguer” do cliente (em inglês “hired-gun”); por defeito, se o advogado fosse uma espécie de tutor moral do cliente.
É uma relação paritária, quando ela desaparece é mau sinal. E a relação constrói-se normalmente num devir temporal, num processo, em que as posições estratégicas e as tácticas vão sendo afinadas em conjunto, de acordo com o bom conselho do advogado em diálogo como o seu cliente. E que pode até vir a tornar-se numa amizade.
A questão da confiança, de que o sigilo profissional é uma das suas facetas, coloca-se como premissa para essa relação: o advogado representa os interesses do seu cliente da melhor maneira que sabe e pode; o cliente deposita no advogado a condução do processo, contando-lhe todas as circunstâncias do caso (há um ditado popular que diz que ao “médico, ao advogado e ao abade conta-se toda a verdade”) colocando-se a seu lado, porque crê que o seu advogado representa-o da melhor forma possível. A procuração conferida ao advogado é o instrumento que consubstancia esse delegar de poderes e assenta nessa confiança que se pode ver ferida com acções paralelas do cliente ao interferir no campo de acção do advogado.
Em certa medida, a melhor forma de o cliente pretender que os seus interesses sejam defendidos é a de se chegar a um equilíbrio entre diálogo com o advogado e retraimento frente à acção concreta no terreno, isto é, passa por ajudar o advogado contribuindo para a construção de soluções e deixar o advogado depois dirigir a forma como o processo se desenrola.    

Técnico?
Essa parceria, constrói-se com base numa competência, em algo que os outros procuram em nós que lhes falta: os conhecimentos jurídicos, e a forma de os aplicar num determinado campo ou realidade. Ou seja, alicerça-se numa competência. E somos pagos por essa competência, e por a pormos ao serviço dos nossos clientes.
Para sermos bons técnicos, há que ter estudado e praticar a profissão.
Na faculdade aprendemos a raciocinar juridicamente. Frente à realidade fáctica, o raciocínio jurídico consiste em saber destrinçar o essencial do acessório e a subsumir os factos ao sistema normativo. Por sua vez, a aplicação do sistema normativo depende de percebermos as linhas mestras de determinado regime, compreendendo os princípios que regulam esse regime, e a forma como as normas se aplicam. Um não jurista tem a tendência para uma aplicação assistemática das normas, sem consideração pela unidade e racionalidade do sistema. Daqui vêm problemas graves pois, muitas vezes, quem aplica as leis são não juristas, que se apegam apenas à letra da norma, sem consideração pelo todo, pelas precedências e estrutura que enforma a lei e pelos princípios que estão na sua base.
Ser advogado é dominar uma técnica complexa. Daí que se exija uma formação especialmente longa, que tem por efeito criar uma forma própria de pensar, que passa por dar a conhecer os vários ramos do direito e, sobretudo, de treinar o exercício dessa técnica.  
É uma profissão exigente, implica estudo contínuo de soluções, para muitos profissionais também muitas vezes abdicar de fins-de-semana, fazer algumas noitadas...

AS CARAS E POR TRÁS DOS PROCESSOS

Na minha já relativamente expressiva actividade enquanto advogado, que se iniciou há cerca de 15 anos, custou-me o tempo que estive encerrado sobre mim mesmo de volta do computador, analisando lei e jurisprudência, redigindo documentos para ser apresentados ora a um tribunal (mais raro), a uma qualquer entidade administrativa (mais frequente), ou a qualquer agente das minhas relações profissionais.
O que me impele para o fazer são por vezes angústias de clientes, que dependem disso para verem avançar qualquer assunto da sua vida. A profissão de advogado depende muito disso.

Gosto de estudar, mas por vezes as exigências de um sistema que assenta muito em papel acaba por criar uma processualização exagerada e que nos parece desajustada, sobretudo quando assentam em conflitos. E há quem pretenda através dessa processualização ganhar tempo, tornar mais complexa a análise dos casos e dificultar que cheguem ao fim. Não deixa de criar alguma frustração.
A Administração Pública também não ajuda em muitíssimas vezes, exigindo procedimentos e cumprimento de formalidades exageradas.
Tudo isto faz com que por vezes a profissão de advogado possa significar um desequilíbrio que tende menos para a defesa activa de problemas de forma enérgica, e mais para se tornar um burocrata. Neste sentido, julgo que ajuda ao advogado aceitar que há de facto uma carga de burocracia a aceitar e que quanto mais organizado for, mais facilmente suportará essa faceta menos agradável da profissão, que na realidade é um meio importante para a boa defesa dos interesses dos seus clientes. Criar hábitos de organização e método faz poupar muito tempo e energia.
Na verdade, nunca se deve perder de vista que o advogado representa pessoas e que a profissão tem uma utilidade social indubitável. Já o senti inúmeras vezes. Uma vitória num processo é uma pessoa que fazemos feliz.
É uma forma honesta de ganhar dinheiro.

COMO É QUE ALGUÉM SE TORNA ADVOGADO? E OS DIFERENTES ESTILOS DUM ADVOGADO

Embora na faculdade se desvaneçam muitos sonhos de que o direito é uma profissão verdadeiramente ligada a valores como a justiça e pareça apenas a aplicação dum sistema normativo e a aprendizagem da técnica, as profissões forenses são profissões ligadas à vida comunitária, ou à vida societária, como se queira. Elas têm por fim sempre, a defesa de posições e de interesses de alguém. São pois profissões de natureza relacional e argumentativa. Elas manifestam a natureza humana na sua heterogeneidade, na sua multiplicidade de interesses - por vezes convergentes; por vezes divergentes -, precisando de ser expostos, apresentados e discutidos. Neste sentido, revelam a subjectividade de que somos feitos, sendo as ciências jurídicas naturalmente ciências humanas.
Ninguém nasce advogado como ninguém nasce arquitecto ou engenheiro. Uma pessoa “faz-se” advogado, como “se faz” arquitecto ou engenheiro.
No meu caso pessoal, sempre tive uma inclinação para as Humanidades. E até para as Humanidades mais especulativas como a filosofia. O direito é uma ciência humana de índole prática, muito diferente da filosofia. O que me atrai no direito é que, à semelhança da filosofia, o direito é prático mas também argumentativo. Assim como a política. Os problemas do direito não são normalmente especulativos. Têm a ver com a vida concreta de pessoas e com os assuntos que têm em mãos.

Quando estava na faculdade gostei muito de Direito Constitucional que apelava a questões que se prendiam com um sistema claro de distribuição de poderes e a uma análise jurídica feita num esquema claro. Fui proficiente em outras matérias jurídicas, como em Direito das Obrigações em que conceptualmente as matérias estavam fixadas com alguma nitidez, mas já não muito em Direitos Reais, que me pareceu um ramo em que os conceitos pareciam muito “escorregadios”, o que admito em parte advir dos manuais porque estudávamos.
Interessava-me por assuntos como Economia Política, assim como tudo o que se prendia com os princípios axiológicos que regem matérias mais económicas (o Direito Fiscal, por exemplo) e que plasmavam princípios constitucionais como o princípio da legalidade, da tutela da confiança, entre outros.
O direito divide-se em muitos ramos distintos, sendo que em todos eles há uma parte processual. Ora sucede que esta parte processual é altamente complexa e não sempre fácil de se entender, porque dada na faculdade de forma não concreta com situações da vida mas sob forma de exercícios académicos (como não podia aliás deixar de ser). Parece-me que também a pedagogia e a capacidade explicativa dos professores nem sempre é a melhor e que o critério de escolha dos professores pouco assenta nas suas capacidades de ensino.
A minha experiência na faculdade revelou-se como um período bastante árido e difícil. O ambiente era muito competitivo e não tive muitos amigos com quem estudar e partilhar as minhas angústias e dificuldades; os professores pouca ou nenhuma relação tinham com os seus alunos.
Passados que estão quase 20 anos desde que terminei a universidade, penso que o Direito ensinou-me bastantes coisas e sinto a evolução que fiz. Quando olho para trabalhos que fiz há 5 anos noto que evolui. Mais ainda se analiso um documento feito há 10, 15 ou 20 anos. O meu raciocínio apurou-se, um texto feito por mim há 20 anos é muito menos claro do que feito agora. O Direito em certa forma tornou-me uma pessoa mais prática, com os pés mais assentes na terra, com menos ilusões. Temos que desconstruir muitos dos castelos que construímos no ar, estar mais atentos à realidade.
O Direito é um constante e permanente exercício de resolução de problemas mais ou menos difíceis. Pede-nos capacidades de análise, de reflexão, de síntese e de rigor. Pede-nos capacidades de explicação, de argumentação, de persuasão, se não mesmo de sedução (no outro dia alguém me dizia que um advogado é um sedutor). Em certa medida é uma profissão que requer capacidades muito diversificadas.

Cada um pode orientar-se para um estilo de advocacia que melhor lhe assenta. Há muitos estilos de advocacia. Há advocacia mais de escritório e advocacia mais de barra.
No entanto, se há algo que penso transversal ao direito é o seu carácter argumentativo e, numa imagem certamente não "trompeuse", o de pessoas livres - manifestado anedoticamente na imagem de seres que estão sempre a discutir, que procuram a discussão por feitio (será por isso que é uma prática comum que os sócios das sociedades de advogados estejam sempre a zangar-se e a montar novas sociedades de advogados?!). Na minha família de arquitectos, nem sempre foi bem aceite esse meu feitio "reverbativo"... em bom rigor, penso que a dialéctica é muito importante e assumo-a como uma virtude e não um defeito, mais como método de construção do que como forma de destruição (em francês "discuter" é conversar)

Na universidade treinamos sobretudo a parte técnica da coisa, a gramática da profissão e é pena que muitas vezes essa aprendizagem não seja feita de uma forma mais motivante. Na profissão, aprendemos a desenvolver todas as soft skills e a dar um sentido ético à nossa actividade. Assim, com os rudimentos da gramática podemos começar a prosa da profissão e a escrever de acordo com o nosso estilo próprio. O ideal seria que pudéssemos conseguir escrever poesia também; essa poesia é talvez o produto destilado de muitos anos de profissão.

E em que é que ela se manifesta, essa poesia?! Em histórias como aquela dum mecânico a quem um determinado agricultor levou o seu trator e que estava com uma avaria. O mecânico abriu o motor, deu uma volta ao trator e pegou numa chave inglesa e deu um golpe seco numa certa peça. O motor ficou logo a funcionar. “Quanto é”, perguntou o agricultor?”; “São 105 euros”, respondeu o mecânico. “105 euros?! Tanto!”, reagiu o agricultor, “O senhor só deu um golpe seco numa peça. “Sim, são 5 euros por esse golpe e 100 euros por saber onde o dar!”, respondeu o mecânico.
Aprendi a dar muito mais importância ao lado relacional do direito, afinal o direito assenta numa condição do humano enquanto “animal social”.
A parte técnica é algo que estamos sempre a aprender, por prática do ofício, mas se não fomentamos também a parte do convívio, podemos tornar a nossa vida um tanto ou quanto aborrecida. O relacionamento com os clientes, a construção de relações de confiança com eles, assenta muito nas capacidades relacionais que temos. O bom senso, ou aquilo a que se chama a inteligência emocional, são competências que não se aprendem nos livros, mas dependem de uma gestão da nossa vida no “comércio” com os outros, na interacção com os outros. Diz-se que o sucesso profissional duma pessoa a logo prazo, por contraste com alguém que apenas é um bom técnico, depende muito disto.
Em estudos de pós-graduação que fiz, assentei muito mais a minha atenção nos vínculos e amizades que poderia fazer. Sabia que muito do que iria aprender não teria qualquer utilidade futura para mim. As notas também não seriam relevantes, mas muito mais importante seria conhecer outras pessoas, trabalhar com elas, partilhar o tempo e os momentos fora das aulas, tornando também muito mais agradável todo o contexto de estudos, que por si eram exigentes e trabalhosos.  
Cada vez mais estou convicto que a capacidade relacional é um factor diferenciador e, por exemplo, ter uma rede de amigos profissionais com quem se possa conversar e falar dos seus casos e dificuldades é um importante activo, a alimentar. Além de nos fazer bem enquanto pessoas, faz-nos bem profissionalmente. Uma tertúlia entre advogados parece-me neste sentido uma boa ideia, sobretudo se partilharem formas de estar e de amizade.

COMO SE PRATICA HOJE EM DIA A PROFISSÃO?

Os profissionais liberais têm tendência para se juntar em sociedade pois assim conseguem encontrar economias de escala e partilha de clientes e casos onde cada um se sente mais preparado. É uma forma de entreajuda e de partilha que quando as pessoas se relacionam bem (há quem diga que é mais difícil ter bons sócios que um bom casamento…) tem evidentes ganhos.
Há também naturalmente quem exerça a profissão em prática isolada, porventura cada vez mais raro, o que exige mais de cada um e que tem maiores riscos, mas que também por vezes confere uma grande liberdade pessoal. Tem sido o meu caso, numa prática essencialmente virada para o Direito do Imobiliário e do Urbanismo.

Crescentemente, sobretudo em cidades maiores criaram-se grandes escritórios de advogados, que são na realidade grandes empresas que conseguem representar clientes institucionais que requerem também eles estruturas maiores.
Há um facto bastante notório de que a profissão, sobretudo em determinadas estruturas organizativas mais empresariais, tem-se tornado por vezes demasiado consciente da eficácia e da produtividade dos seus advogados. Um facto que por si é positivo de avaliação de desempenho, mas se feito de uma forma desequilibrada e em vista sobretudo do retorno financeiro pode no entanto ter por efeito tornar os advogados demasiado enclausurados em gabinetes e afastados da realidade social, qual guetos, com custos para o seu próprio bem-estar pessoal. Por outro lado, a eficiência financeira, se erigida em principal critério, não deixará de se manifestar em certos casos num condicionamento da liberdade do advogado, para conduzir os casos da maneira que lhe parece ser mais correcta do ponto de vista ético, atendendo à justiça concreta de cada caso (e acaba por criar uma relação perversa com os clientes). Por vezes, as lógicas internas dessas estruturas, como aliás de qualquer estrutura organizativa de maior dimensão (como por exemplo um partido), não permitem o exercício da plena liberdade de consciência dos seus profissionais, actuando os seus membros muitas vezes sob uma certa “reserva mental”.

O EQUILÍBRIO NA NOSSA VIDA

Entre autómatos e mestres de nós próprios
A aceleração temporal faz com que vivamos ao ritmo da comunicação e como esta cresceu muitíssimo, temos acesso a muita informação. Informação que temos dificuldade em digerir. Como diz Charles Landry “cada vez mais, a nossa primeira sensação (…) é a de excesso de informação, o que nos faz sentir que as coisas estão fora de controlo”. Diz-nos ele que “quer a publicidade quer os meios de comunicação procuram preencher com os mais estridentes tons e sons, os desejos de cada um. Há toda uma distração, perca de atenção, de concentração e de foco”.
A dispersão crónica em que muitas vezes vivemos tem consequências gravíssimas em termos de saúde mental. O mundo exterior envia-nos tantos dados contraditórios e todos lutam por ganharem na guerra da nossa atenção.
Se não sabemos proteger-nos da agressão exterior, ficaremos contaminados por tanta poluição e andaremos para onde sopra o vento, tal qual catavento. Isto gera inseguranças e ansiedade, porque soçobrando frente à força dos factos exteriores perdemos a nossa ligação ao nosso eu profundo, anulando-o. Mas ele continua a existir, mesmo que na obscuridade, desalinhado com aquilo que escolhemos, em decisões tão pouco reflectidas.
O mundo exterior obriga-nos a respostas rápidas. Por aí se vê que tantas decisões no campo político sejam tão pouco preparadas, o que resulta num descrédito nos nossos representantes e, mais grave, num enfraquecimento das instituições. Parece que vivemos à semelhança do jogo das cadeiras em que se não escolhemos rapidamente a nossa cadeira ficaremos de pé, sem cadeira, e que as interrupções da música sãos cada vez mais frequentes.
De acordo com Byung-Chul Han, uma das mais inovadoras vozes filosóficas surgidas na Alemanha, o Ocidente está a tornar-se uma sociedade do cansaço. Segundo este autor germano-coreano, qualquer época tem as suas doenças características. Houve uma época bacteriana, que terminou com a descoberta dos antibióticos. A época viral foi ultrapassada através das técnicas imunológicas, apesar dos periódicos receios de uma pandemia gripal. O início do século XXI, do ponto de vista patológico, seria sobretudo neuronal. A depressão, as perturbações de atenção devidas à hiperactividade e a síndroma do desgaste profissional definem o panorama atual.
Há estudos que demonstram que a profissão de advogado, ao tornar-se demasiado preocupada com a eficácia e com ganhos financeiros, perdeu muito do seu encanto. É essencial que nos preocupemos com a qualidade do nosso tempo, muito mais do que com a quantidade de coisas que conseguimos encaixar na nossa agenda. Daí que tenhamos que ser selectivos e que nos tenhamos que auto-regular, tendo a coragem de por vezes dizer “não”.
Diz-nos Vasco Pinto de Magalhães que só “avança quem descansa”.
É muito importante criarmos um equilíbrio na nossa vida entre acção e contemplação. A sabedoria de velhas práticas agrícolas em que os campos depois de cultivados ficam em pousio pode-nos ensinar muito sobre o que é a regeneração. O tempo de descanso é um tempo para deixarmos aflorar em nós o nosso eu profundo. Para deixar respirar o nosso corpo, as nossas fibras. Para nos deixarmos ser e estar simplesmente. As férias devem ser tempo de paragem.
Encontro muita paz na natureza e aprecio caminhar. Gosto também de dar bons mergulhos no mar.
Discernir tem que ver com a capacidade de ver a realidade, de pesar as coisas e as opções, vendo o fundo das questões à luz de valores, traçando uma direcção. Não devemos ser autómatos a disparar para todos os lados, respondendo a todos os estímulos exteriores mal eles se nos apresentam. Isto não quer dizer que devamos ser rígidos, com um plano muito bem traçado. Não, a realidade pede-nos que sejamos tacticamente flexíveis, mas devemos pensar primeiro no que pretendemos que seja o fio condutor da nossa acção. Há aqui naturalmente o emprego da disciplina, um exercício de reflexão e de avaliação regular para que, quando nos colocamos em acção, ela seja motivada por um trabalho prévio interior.
Para que possamos empregar estas nossas capacidades, temos porém que estar em condições para o fazer, precisamos de encontrar paz na nossa vida. Temos que estar com saúde, bem dormidos, com tranquilidade.

A importância do contacto com os outros
A relação com os outros é um factor determinante para o nosso bem-estar. Se estamos sempre a correr dum lado para o outro, não conseguiremos estar verdadeiramente com ninguém.
A profissão de advogado mudou muito neste aspecto.
Nas pequenas comarcas ainda se vive em contacto com as outras profissões do foro, a profissão radica muito mais na comunidade.
Mas se estamos preocupados apenas em produzir, o advogado acaba por viver isoladamente, fechado no seu gabinete, sem as relações pessoais que tornam a profissão uma profissão que sempre esteve intimamente associada com o pulsar das comunidades e a interecção. Além de afastar a prática profissional da realidade, isto tem por efeito claramente um risco para a saúde mental dos advogados, diagnosticado também como um factor de mal-estar profissional.
Qualquer pessoa precisa de se sentir parte de algo, precisa vitalmente do encontro com os outros para se sentir bem.
Uma profissão exigente e complexa como as profissões forenses precisa ademais que se criem vínculos de partilha e de intercâmbio pois é também fundamental para o crescimento profissional dos seus membros. Através desse “comércio” de ideias, os problemas são mais facilmente abordados porque partilhados com quem tem também sensibilidade jurídica, pensa-se em voz alta, arruma-se a cabeça.
Por outro lado, a ansiedade recebe a atenção de quem percebe que os assuntos muitas vezes não têm respostas imediatas, numa solidariedade que se faz por pôr-nos a reflectir em conjunto. Ter uma rede de apoio entre profissionais do mesmo foro é um seguro de qualidade profissional.

Sermos organizados
Muitas vezes vemos os advogados queixarem-se que trabalham muito, que têm grandes jornadas de trabalho, sem tempo para nada. Isto tem uma parte de verdade e uma parte de exagero.Há quem por inércia e arrasto se torna escravo dessa prisão que pode ser uma secretária, o computador e os papéis. Uma pessoa organizada encontra tempo para tudo, se souber gerir bem o seu tempo.

Gerir o tempo é prever. É visualizar o futuro, encorporar-nos nele por imaginação. É uma antecipação que melhor nos permitirá viver o que ainda não é presente, mas que trazemos presente a nós para o viver o melhor possível quando esse tempo chegar a nós. É tentar esgotar o que ele nos tem a oferecer, explorar ao máximo o seu potencial. Cruzamento de informação, espírito inquisitivo, capacidade imagética.

Quem é organizado, pode também usar a sua criatividade de uma maneira mais inteligente. Eu creio que um advogado precisa de ser criativo também. Mas a criatividade tem que ter condições se realizar. Só quando temos tempo de qualidade é que podemos dar o melhor de nós. Quem é atabalhoado, trapalhão, desorganizado desperdiça também a sua criatividade. Se temos a nossa vida organizada, podemos também pensar com mais calma nos processos que temos. Nas soluções para os mesmos processos.

Criar hábitos de organização é fazer coisas simples como preparar a semana. Fazê-lo à segunda-feira, por exemplo. Espalhar as coisas a fazer pela semana. Nela distribuir conforme locais a estar, disposições e motivações, necessidades e vontades. Destinar tempo para o trabalho, organizar o trabalho, deixar tempo livre de qualidade. Isso é o “preparar a plasticina”. E organizar a nossa vida é também ir riscando, ao longo do caminho, tarefas já feitas, reorganizar, escolher prioridades.

Enfim, uma pessoa organizada goza o tempo doutra maneira e tem tempo para tudo: acredito verdadeiramente nisso. Uma pessoa organizada terá tempo para viver no presente, para se poder esquecer no presente e viver todo empenhado no presente.

Ser organizado não é ser chato e levar o planeado como o peso duma obrigação. Por isso, normalmente, organizo a semana à segunda-feira e o que fica por fazer - há coisas mesmo que adio e deixo para "amanhã", e só mesmo à sexta-feira as volto a pegar (“dia de restos e revisões”, como lhe chamo).

EM GUISA DE CONCLUSÃO

Na minha infância subi árvores, fiz corridas de bicicleta, descobri esconderijos e passagens secretas. Saltei cercas e fiz provas de coragem. No Verão acampávamos e fazíamos fogueiras, edificávamos casas com fardos de palha. Demos saltos na piscina, tentávamos furar a arrebentação das grande ondas e nadar bem para longe. O maior sonho de todos era ter um rio. Havia uma ribeira perto da Quinta e fomos lá várias vezes, em grupo, tentar apanhar peixes.

Depois cresci e tornei-me advogado. 

Mas ser advogado pode ser permitir que outros subam a árvores, façam corridas de bicicleta e descubram esconderijos e passagens secretas... e muito mais. Que outros sejam livres e felizes. O preço a pagar é o meu tempo e a minha energia. E pode ser que nos intervalos, se for fazendo bem os tpc, ainda encontre tempo para continuar a subir a árvores.

Ser advogado é mais um estilo de vida que uma profissão, é sobretudo ser-se livre e dar vida. Alguém uma vez disse que um poeta não se reforma; acrescentarei porque tem sede de Paraíso. O advogado tem a mesma agitação interior do poeta e pode ir ao Inferno para resgatar o Paraíso.


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