Cidadela

Ontem deambulava à noite os olhos pelas estantes de livros (parece que o talentoso Alain de Botton tem uma valência que tem a ver com receitar livros consoante estados de alma).

Peguei em "Montaigne" de Stefan Sweig e estive entre ontem à noite e esta manhã (ao acordar) entretido.  Este livro cruza-se com uma conversa que tive no outro dia com a minha prima Maria e o Bernardo, o seu marido. Ambos trabalham com arte e o Bernardo é mesmo artista. Ora, sem eu me lembrar exactamente sobre o que é que abordámos em concreto, o  Bernardo disse-me algo que me tem deixado a pensar.  Enquanto artista, o que ele procura de reconhecimento é ser reconhecido pelos seus pares. Na verdade, aqueles que estão em melhores condições para julgar o nosso trabalho são aqueles que vivem nele. 

Eu sempre tentei evitar grupos fechados, onde o ar pode parecer mais "rarefeito": a abertura à transdisciplinaridade sempre me pareceu interessante. Tenho um pouco de resistência aos corporativismos que pouco aceitam o pensar diferente. O notável exemplo do Impressionismo, em que grandes como Monet foram banidos de expor no Grand Palais penso que é eloquente por si só. No entanto, percebo o que o Bernardo diz. O exercício critico do que se faz passa-se em todas as profissões. No mundo da arquitectura, por exemplo, organizam-se colóquios e exposições. Discute-se as opções estéticas, a linguagem. E o grande público, naturalmente passa ao lado de tudo isso. O seu crivo é muito menos exigente e, a mais das vezes, satisfaz-se com o que se lhe dá, com o produto das modas e das conveniências. Daí que muitas vezes também os artistas (e isto se estende em boa verdade a todos os campos) optem apenas por uma lógica comercial.

Montaigne, no seu tempo parece que esteve 10 anos encerrado numa torre. Assim se sentiria verdadeiramente ele, sem concessões, livre enfim. Meditava com os seus botões sobre a vida, deixou-nos os "Ensaios", um extraordinário testemunho de sabedoria de vida.

A liberdade de ser exige uma disciplina difícil. Alain de Botton, no seu livro "Status Anxiety" fala-nos do que é a nossa procura por agradar aos outros. Vivemos certamente condicionados e o nosso amor-próprio depende também do reconhecimento dos demais. Na adolescência tentamos marcar a nossa identidade, mas com os anos a nossa identidade passa a ser muito, muito condicionada pelo reconhecimento dos demais.

Um Espinosa ostracizado, arredado do mundo, não será certamente um ideal de vida a que devamos aspirar. Mas devemos constantemente fazer essa avaliação das nossas relações, não nos deixarmos afectar demasiado pelo que nos dizem, mesmo que aparentemente nas melhores das intenções. É que involuntariamente muito aparece simplesmente como forma de acomodação a um status, e isso é muito perigoso porque nos tolhe a vista e nos prende os movimentos.

É muito fácil cedermos à tentação de nos acomodarmos. Simplesmente, o perigo é que estamos a ser um pouco menos nós mesmos.  Na vida não temos que escolher apenas o caminho menos percorrido, por vezes devemos fazer como os demais. Mas não nos devemos deixar emaranhar...

Recentemente, voltei a ver o filme "Idade da Inocência" que me impressionou enormemente. Fala de facto desse enorme condicionamento da sociedade, muito mais intenso na época do que é nos nossos dias. O que é perturbador é que aquele jovem inteligente vai cedendo e cedendo. Aquele que se achava um homem livre, capaz de discernir uma vontade própria é enredado numa teia que o prende de asfixia. Passa toda uma vida assim e, no final do filme, aquela Place de Fustemberg (que eu conheço tão bem dos meus tempos em Saint-Germain) enquadra o desgosto enorme do desencontro consigo mesmo. Mais do que o desencontro com a mulher que ama, penso que ali se exprime o desencontro consigo mesmo, a morte, o baixar de braços, o fracasso mais completo da identidade. É duma enorme tristeza.

Antes de mais, respeito a nós próprios. Amigos de nós próprios, não tendo que explicar os passos para um lado ou para o outro. Amigos de nós próprios, porque afinal convivemos 24 horas por dia com a pessoa que o nosso corpo transporta, com os seus sentimentos e os seus estados de alma.

Regresso ao início: devemos procurar o respeito dos nossos clientes? Dos nossos pares? Da sociedade? Certamente que sim. Mas que nunca nos deixemos aprisionar por uma imagem acabada de nós próprios. 

Como falava esta semana com a Emma Gilbert, a "janela de Johari" define-nos como seres sempre à procura, incompletos.

A Cidadela é o nosso interior mais profundo. Que segredos guardamos e que identidade própria, irrepetível, é a nossa?

  

Comentários

Monserrate disse…
Entendo esta questão dos pares. Faz-me sentido que o reconhecimento e as críticas tenham um peso diferente, quando são ditas por quem pisa o mesmo chão, quem molda o mesmo barro… há um sentimento de pertença, de “clã” … no limite há o viver da mesma paixão/vocação.

O merecido reconhecimento acaba sempre por chegar… que em nós não se instale esta dependência. Que a nossa vida não seja movida pelo posterior reconhecimento e glória. Sou de grupo de pessoas que defende um maior equilíbrio entre as nossas motivações e o reforço positivo. A nossa autoestima deve vir de dentro, deve ser estrutura firme que dificilmente desaba ou cede na ausência de reconhecimento. Reconhecendo ainda assim o seu importante papel.

Quantos de nós já nos sentimos Monet’s? Incompreendidos, rejeitados em grupos e projetos, marginalizados, sem espaço “para sermos”. Momentos indispensáveis aos nosso crescimento, que acabam por ser reveladores, orientadores… Não temos que caber, todos, nos mesmos quadros; frequentar os mesmos ambientes; falar dos mesmos temas; o importante é sentimo-nos nos “lugares”, nos “outros” e irmo-nos ouvindo e vendo. Onde somos mais nós? Onde damos o melhor de nós?

A resiliência é a chave. Leva-nos a superar, a procurar fora, reprogramar, reorganizar, a sentirmo-nos em muitas outras comunicações. tentando respeitar o princípio inviolável, de nos mantermos fiéis a nós próprios. Difícil, audaz, doloroso, revelador, salvífico…só assim nasce este sentimento único e profundo de uma liberdade desmedida que não se detém. Todos nós a sabemos reconhecer?

Somos livres quando nos reconhecemos, nos aceitamos, nos amamos, quando nos desacomodamos, quando somos fiéis e ímpares. Terá de haver coragem, espontaneidade, discernimento, desejo, verdade, serenidade, temperança, oração.

Haverão tempos férteis e momentos de profundo abandono. Mas fortes, audazes e esperançosos como nos tornamos seremos o maior refúgio e proteção de nós próprios. Em nós está o que de mais importante existe, o que nunca deverá ser tomado, destruído, roubado. O nosso maior tesouro… A nossa CIDADELA!

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