Senhor Manuel, engraxador de sapatos do Rossio

 


Foi a segunda vez que tive um encontro com o Senhor Manuel.

Hoje, depois de ir levantar os meus sapatos, que ficaram a arranjar no sapateiro que tem como estabelecimento de porta aberta na Rua dos Correeiros, na Baixa, uma entrada dum prédio mesmo ao lado das Finanças (onde o atendimento é exemplar), fui à Missa em S. Domingos e, logo a seguir, atravessei a Praça do Rossio, onde um senhor de idade se fixou como engraxador de sapatos.

Como resolvera tirar esta manhã para os "aprestos" do dia, em jeito de descanso pelos dias mais agitados que tenho vivido ultimamente, resolvi ter o tempo que fosse para que o trabalho de pôr os meus sapatos a brilhar se fizesse sem pressas.

Entabulei conversa e fui tentando saber quem era este senhor, que se instalara ali, com todo um equipamento bonito e antigo e que ia metodicamente exercitando a pele dos meus Sebagos, que me dizia iriam ficar como novos. E que melhores ainda ficariam se quisesse voltar e a tratar deles.

É um senhor de idade, com olhos azuis, disse-me que era reformado. Que vivia em Campo de Ourique e que fora na sua vida activa estufador. 

Acusei nele trejeitos de fala galega. Fiquei na dúvida donde é que ele seria. Quando depois de lhe perguntar como se chamava e de me ter dito que era Manuel, ele me pergunta como me chamava eu e de lhe responder que era Duarte, diz-me: “eu também sou Duarte. Mas de apelido”. Não seria pois galego, um dos tantos que historicamente habitaram a Baixa Pombalina.

Disse-me que era da Beira Alta. Duma aldeia perto de S. Pedro do Sul. E eu fiquei na dúvida se aqueles trejeitos seriam do português falado antigamente nas aldeias, um resquício do galaico-português…

Enquanto o Senhor Manuel desafiava a pele dos meus sapatos, passando vários objectos por eles, uns mais afiados como uma escova de arame - que os riscou por completo e que por instantes me fez temer pela preservação do meu calçado, esponjas de camurça e umas gangas que com as suas grossas mãos prendeu e foi puxando dum lado e outro, disse-me que tinha uma reforma e que vinha trabalhar todos os dias. Fazia-lhe bem. Sempre andava um bocadinho e falava com gente simpática, como eu. Arrumava as suas coisas ali ao lado da tabacaria, pelo que não tinha que carregar com tudo. A sua mulher perguntava-lhe se ele não preferia ficar em casa e ele disse-me que preferia vir para ali, mesmo que com frio e vento, pois quem ficava em casa eram as pessoas que não tinham gosto por viver.

Perguntei-lhe se tinha filhos. Sim, um filho, estava em Madrid, que ficará por lá. Disse-lhe que Madrid era uma cidade grande, com muitas oportunidades certamente. Que Lisboa era mais bonita, com as suas colinas. Ele disse-me que Madrid tinha sido inventada de novo. Disse-lhe eu que gostava da Plaza Mayor. Ele acrescentou que tinha  algumas coisas bonitas, mas que tinha uma coisa muito particular: eram 9 meses de Inverno e 3 meses de Inferno! Melhor definição para o clima de Madrid nunca ouvira.

Ele próprio vivera 30 anos da sua vida em Madrid: estava descoberto o mistério e eu revelei-lhe o que pensara: "donde viria aquele sotaque que acusava o espanhol?"

E porque não ficara por lá? “Cresci aqui em Lisboa. Esta é a minha terra”.

Contou-me que se casara em Madrid com uma rapariga russa. Que tinham uma casa em S. Petersburgo (a 4.ª portanto, além da casa de Campo de Ourique, das propriedades nas Beiras e da casa em Madrid fiz eu as contas).

O Senhor Manuel, engraxador de sapatos no Rossio, todos os anos apanha um avião para Barajas, para depois viajar para S. Petersburgo. Voam de Madrid, porque precisa que a Segurança Social de Espanha, que lhe paga a reforma, veja que ele está em Espanha porque é aí que tem a sua residência. Se tivesse residência oficial em Lisboa, pagariam menos de reforma.

Disse-me o Senhor Manuel que este ano não vão a S. Petersburgo no Verão porque esteve parado 2 meses e o negócio esteve pior, não houve turistas. A cidade tem uma praia que dá para o Báltico e que o Verão é quente, que eu posso ir com eles quando quiser. Contei-lhe que estivera a ler o livro a Guerra e Paz de Tolstoi, que fala dessa cidade e de Napoleão. A Rússia tanto no tempo de Napoleão como dos alemães, apenas se defendera, comenta o Senhor Manuel.


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