Anónimos



Hoje ao final do livro estarei com amigos e falaremos sobre livros que andámos a ler recentemente.

Há pouco, durante a hora do almoço, fui para o Jardim da Estrela ler um pequeno livro que comprei para passar entre amigos e promover as nossas leituras. Este livro, escrito por Joana Bértholo e intitulado "Natureza Urbana", acompanha as meditações de uma mulher só, na grande cidade. Fez-me lembrar um pouco uma prima duma amiga minha, também uma mulher só, na grande cidade e a quem se descobriu rcentemente que terá uma doença oncológica.

Gostei bastante do livro, não se pode dizer que seja uma história extraordinária, mas toca em vários temas que eu tenho pensado nos últimos tempos:

Antes de mais foca as relações e o que elas fazem connosco: neste caso a relação entre uma mãe e uma filha. De acordo com a "Teoria do Intregracionismo Simbólico", de Mead, somos muito o que os outros projectam em nós: se acreditam em nós, nós teremos uma visão de nós próprios como pessoas competentes e com valor; o contrário, acaba também por ser muito verdade. Ora, a personagem deste conto é alguém que sempre foi diminuído pela sua mãe, que a tratava como pessoa destituída de todas as qualidades. A história começa depois da sua mãe morrer e de ela ser despedida do Salão de Beleza onde trabalhava, momento crítico em que ela se dá conta que é uma desconhecida de si própria, pois sempre se habituou à rotina. Confrontada assim com o vazio da presença do outro (da sua mãe), e com um tempo sem nada que fazer (despedida), surge nela a questão de quem. "Quem sou eu?!" 

Sonha com um cacto e apercebe-se que a sua vida terá que ser semelhante ao do cacto: sozinha a resistir no deserto. Então, desfaz-se de tudo o que não precisa para poder transformar isso em dinheiro e, com isso, descobre uma biblioteca, local onde se cultiva o silêncio e, diria eu, também a sabedoria. Os livros abrem janelas dentro dela própria; estabelece também uma relação com o bibliotecário. Interroga-se sobre a cidade, sobre de que será ela feita. Percebe-se como ser urbano. Sucedem-se livros, de vários géneros, sugeridos pelo bibliotecário que é um mestre em interpretar os livros de que ela precisa. Esta abertura fá-la sentir-se feliz e livre, em leituras exercidas enquanto procura emprego, nos seus trajectos e viagens para as entrevistas. Certo dia, dizem-lhe que foi aceite no Matadouro local. E é aí que a vemos de novo confrontada com os automatismos e as limitações de uma cidade que é uma grande máquina que tritura tudo, como a vontade de ser feliz. Deprimida, ensaia criar uma bomba para destruir o mundo à sua volta - e é apanhada pela justiça. Paradoxalmente é na prisão que se volta a encontrar. Aí pode ler e contemplar.

Na minha vida já pensei se também não conseguiria ser feliz na prisão. Acho que sim. Percebo bem a angústia da personagem da autora que se sente esmagada pela voragem da cidade que engole o tempo e alma. Na prisão fazem-lhe a pergunta que em mais nenhum sítio lhe fazem: como vieste cá parar? Não por acaso a rapariga não tem nome, vive numa cidade que não tem nome, o jardim que frequenta é o "Parque Central".

Ser anónimo na vida, ser anónimo na cidade dói. Em parte a prima daquela minha amiga, atendida num grande hospital público onde se calhar será mais uma utente. Por isso, termos um nome, termos uma história, termos uma identidade é tão-importante. Não gostar do amarelo ou do cor-de-vinho, mas gostar do azul ou do verde distingue o António do Filipe, por exemplo.



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