Uma rainha em peregrinação
Haviam
saído de Coimbra há mais de uma semana e já depois da cidade do Porto, na erva alta, Isabel avista um
pássaro sadio e feliz, abanando agilmente a sua cauda, em gestos traquinas e
rápidos. E, afastando-se da comitiva, dá ordens para se conterem e que apenas
D. Maria Ana a acompanhe. Obediente, a caravana detém-se e poisa no tojo. A Rainha e a sua aia seguem no encalce da ave, nos seus movimentos sincopados.
Daí a chegarem a um regato, são uma centena de passos. O pássaro rapidamente sai de vista e D. Isabel aproveita e recurva-se para com as suas mãos em concha beber um pouco da água refrescante, o que o calor do dia tornava um gesto evidente. Mas, surpreendentemente, não vê na água o seu reflexo, apenas o de sua aia. Porque seria isso?!
E, então, afastada da comitiva, D. Isabel liberta uma lágrima e depois outra e depois
mais outra e... mais outra ainda. Uma rainha também chora - pensa a sua aia - aquela que
sempre foi a maior arauta da paz do reino entre os desavindos Afonsos e seu pai
Dinis, estava esgotada, sem forças. Nesse
momento, no preciso local onde vertem as lágrimas do seu rosto no rio, um peixe, transparece e vem à superfície. Uma truta. Pintalgada, como as sardas do rosto da sua Rainha - pensa a aia.
D. Maria Ana seca-lhe as lágrimas com o lenço e, quando se viram novamente para o rio, veem a truta a custo seguir rio acima, em saltos desafiantes vencendo a corrente.
Entretanto, aproxima-se um monge. Não reconhecendo a Rainha, apenas uma peregrina que chora, o monge agostinho dá-lhe a paz e anuncia a frase do seu fundador: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”. "Haverá um dia em que deixareis de chorar minha irmã" - consola o bom monge. D. Isabel medita tudo isto no seu coração.
Nesse local do Rio Mau, resta ainda a memória de haver um convento de agostinhos junto à Capela de S. Cristóvão.
D. Isabel e sua aia juntam-se à comitiva e levam mais uma dezena de dias até avistarem a catedral.
Chegada a Compostela, D. Isabel prostra-se em oração junto ao túmulo do Apóstolo e deposita a sua coroa real aos pés do arcebispo.
Quando regressa, todo o seu labor é para as obras do Mosteiro de Santa Clara, que sob o seu impulso e patrocínio é terminado, mas ainda hoje ninguém entende porque terá sido o mesmo feito justamente no leito do Rio Mondego, à mercê impiedosa das suas cheias.
Só muitos anos depois, a sua aia D. Maria Ana, revelou a história do que se passou nessa paragem junto ao rio Mau. A alma de D. Isabel que tanto lutou em vida - sempre a nadar contra as águas -, seria levada de Santa-a-Clara pelo Mondego abaixo até ao grande oceano, numa noite de quarto minguante, onde se reuniria em eterna paz ao seu Senhor, num gozo sem fim, sem lágrimas e padecimentos.
No pórtico românico da Capela de S. Cristóvão do Rio Mau, concelho de Vila do Conde, grava-se em baixo relevo de pedra esta história - ou melhor, esta profecia: um pássaro ligeiro num dia solarengo - certamente o Espírito Santo, tão da devoção de Santa Isabel, os dois Afonsos desavindos - tal qual Caim e Abel, um de cada lado de Santo Agostinho e uma sereia segurando uma lua em quarto minguante...
Conta-se, entre os velhos pescadores da Figueira que, em noites de quarto minguante e de mar calmo, é habitual avistar-se uma feliz sereia.
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