Uma rainha em peregrinação

Estávamos no ano do Senhor de 1325. Por entre o calor da campina, a modos de promessa, por entre um séquito silencioso,
avançava curvada e incógnita Isabel de Aragão, a Rainha. 
 
Seu marido, velho e agastado pelas longas guerras com os seus dois filhos Afonsos, morrera nesse Inverno. Entristecida pela morte de D. Dinis, a quem se devotara desde praticamente a sua infância, Isabel partia em peregrinação ao túmulo do Apóstolo, em Santiago de Compostela. 
 
O amor de mulher e rainha levava-a a carregar no coração o peso de uma vida, a dum homem de acção, generoso e enérgico, mas tantas vezes desviado pela intrepidez e o sobressalto, a ponto de poderem fazer dele um homem vingativo. Por isso, como consorte do Reino de Portugal e do Algarve, era importante ir rezar ao túmulo do Apóstolo, encomendando a alma de seu marido, o falecido Rei.
 
O amor ao seu Senhor de sempre, Àquele que transcende a morte, superior a todos os príncipes e potestades, levá-la-ia a se prostrar em adoração, a pedir pelo seu marido e a prestar contas pela sua vida passada de mulher. “Até que a morte os separe”, o seu casamento terminara, mas não a sua vida. Cumprira até aí a sua missão?! O que se seguiria?!

Haviam saído de Coimbra há mais de uma semana e já depois da cidade do Porto, na erva alta, Isabel avista um pássaro sadio e feliz, abanando agilmente a sua cauda, em gestos traquinas e rápidos. E, afastando-se da comitiva, dá ordens para se conterem e que apenas D. Maria Ana a acompanhe. Obediente, a caravana detém-se e poisa no tojo. A Rainha e a sua aia seguem no encalce da ave, nos seus movimentos sincopados.

Daí a chegarem a um regato, são uma centena de passos. O pássaro rapidamente sai de vista e D. Isabel aproveita e recurva-se para com as suas mãos em concha beber um pouco da água refrescante, o que o calor do dia tornava um gesto evidente. Mas, surpreendentemente, não vê na água o seu reflexo, apenas o de sua aia. Porque seria isso?!

E, então, afastada da comitiva, D. Isabel liberta uma lágrima e depois outra e depois mais outra e... mais outra ainda. Uma rainha também chora - pensa a sua aia - aquela que sempre foi a maior arauta da paz do reino entre os desavindos Afonsos e seu pai Dinis, estava esgotada, sem forças. Nesse momento, no preciso local onde vertem as lágrimas do seu rosto no rio, um peixe, transparece e vem à superfície. Uma truta. Pintalgada, como as sardas do rosto da sua Rainha - pensa a aia.

D. Maria Ana seca-lhe as lágrimas com o lenço e, quando se viram novamente para o rio, veem a truta a custo seguir rio acima, em saltos desafiantes vencendo a corrente. 

Entretanto, aproxima-se um monge. Não reconhecendo a Rainha, apenas uma peregrina que chora, o monge agostinho dá-lhe a paz e anuncia a frase do seu fundador: “Fizeste-nos, Senhor, para ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em ti”. "Haverá um dia em que deixareis de chorar minha irmã" - consola o bom monge. D. Isabel medita tudo isto no seu coração. 

Nesse local do Rio Mau, resta ainda a memória de haver um convento de agostinhos junto à Capela de S. Cristóvão.

D. Isabel e sua aia juntam-se à comitiva e levam mais uma dezena de dias até avistarem a catedral. 

Chegada a Compostela, D. Isabel prostra-se em oração junto ao túmulo do Apóstolo e deposita a sua coroa real aos pés do arcebispo. 

Quando regressa, todo o seu labor é para as obras do Mosteiro de Santa Clara, que sob o seu impulso e patrocínio é terminado, mas ainda hoje ninguém entende porque terá sido o mesmo feito justamente no leito do Rio Mondego, à mercê impiedosa das suas cheias. 

Só muitos anos depois, a sua aia D. Maria Ana, revelou a história do que se passou nessa paragem junto ao rio Mau. A alma de D. Isabel que tanto lutou em vida - sempre a nadar contra as águas -, seria levada de Santa-a-Clara pelo Mondego abaixo até ao grande oceano, numa noite de quarto minguante, onde se reuniria em eterna paz ao seu Senhor, num gozo sem fim, sem lágrimas e padecimentos. 

No pórtico românico da Capela de S. Cristóvão do Rio Mau, concelho de Vila do Conde, grava-se em baixo relevo de pedra esta história - ou melhor, esta profecia: um pássaro ligeiro num dia solarengo - certamente o Espírito Santo, tão da devoção de Santa Isabel, os dois Afonsos desavindos - tal qual Caim e Abel, um de cada lado de Santo Agostinho e uma sereia segurando uma lua em quarto minguante...  

Conta-se, entre os velhos pescadores da Figueira que, em noites de quarto minguante e de mar calmo, é habitual avistar-se uma feliz sereia. 



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