A hora legal e o Senhor Tempo

Há um senhor que eu encontro no Chiado que se veste de fato e gabardine e que não gosta de grandes conversas. Passo por ele todos os dias, cumprimento-o, ele levanta o chapéu em gesto decidido, olha em frente e segue. Já tentei entabular conversa, perguntar o seu nome, perguntar o que faz, mas ele nunca me deu a oportunidade de parar um segundo.

No outro dia encontrei-o junto às bancas de alfarrábios, ali na rua Achieta, era um Sábado, demorava-se remexendo em gravuras, mas entretanto, quando dele me aproximava, deram as badaladas da torre dos Mártires - e ele, em passo apressado, seguiu o seu caminho sem me ver. No dia seguinte, quando mudou a hora, no Domingo, encontrei-o impecavelmente vestido, na Brasileira, tomando um café ao balcão. Ouvi-o dizer que o relógio estava atrasado, que o deveriam acertar, que grande perigo adviria se não mudassem as horas do relógio.

Entre as igrejas do Chiado e a Baixa, oiço regularmente as badaladas das torres sineiras darem as horas e não raro vejo o "meu amigo" junto ao passeio olhando para o seu relógio. 

Só no outro dia percebi quem o "meu amigo" era, quando, em passeio matinal junto ao rio com ele me cruzei, estando ele junto ao relógio do Cais do Sodré, o ouvi dizer que ele era quem verificava se esse relógio estava a horas, o Relógio Hora Legal. 

E assim percebi que o meu amigo assegura uma importante função em cada cidade, que é a de colocar as "peças" todas a funcionar de acordo com o mesmo compasso, o mesmo padrão, a mesma hora, evitando que os barcos andem 1 minuto desfasados, os combóios cheguem com 30 segundos de atraso porque o relógio da estação está a precisar de pilha nova.

O senhor de fato e gabardine, anda entre as Igrejas do Chiado e Baixa controlando as torres sineiras e entre os transportes do Cais do Sodré confirmando se os relógios estão todos "alinhados", verificando se as horas batem todas ao mesmo tempo...

Há porém uma coisa que frustra o Senhor Tempo: é que apesar dos relógios andarem sempre afinados através do seu labor intenso, que ainda haja quem chegue atrasado... Parece que chegou a pensar certo dia que se devesse dar multas pelos atrasos, mas quando começou a pensar mais e mais sobre o assunto chegou à conclusão que controlar assim a vida das pessoas exigiria um batalhão de pessoas como ele, que teriam também que andar a horas certas, o que não seria certamente fácil fazer... E assim contenta-se em que os relógios dos estabelecimentos e das torres batam as horas todos ao mesmo tempo, o que já lhe exige muito trabalho e muita atenção - e lhe paga um ordenado razoável. 

Quando o encontrar um dia de fim-de-semana em que esteja mais folgado hei de lhe perguntar como sabe que o seu relógio está certo e como confirmaria o acerto do Relógio Hora Legal, uma questão que me intriga...



 

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